HOMICÍDIOS POR OMISSÃO
Os números oficiosos, baseados nas prisões arbitrárias, na quantidade de presos em campos de concentração, nas múltiplas cadeias, nos fuzilamentos diários, nos enterrados vivos, nos jogados de avião ou lançados ao mar, são aterradores: 60 ou mesmo 80 mil vítimas, na sua maioria intelectuais jovens brutalmente assassinados sem direito a qualquer tipo de defesa. Assassinados porque queriam o melhor para o seu país, porque acreditavam que dizer o que pensavam ser o melhor para o Povo era o melhor predicado que se exigia a cada angolano, a cada um de nós. Enganaram-se. Passou-se uma autêntica “limpeza da intelectualidade autóctone”.
Mas, apesar da sanha criminosa dos seus algozes, há sempre quem consiga sobreviver, há sempre quem consiga resistir. Hoje aqui somos a prova disso. Naquela data, tinha eu 16 anos (criança soldado, feito comandante de tropas), um dos mais novos colocados no gabinete do Comandante Nito Alves. Nessa altura, na minha família quatro foram presos; meu pai, Guilherme Tonet, histórico do MPLA e da 1.ª Região, dois tios meus: Fernando e Alberto Tonet e eu, que fui forçado a “franquear” as portas das fedorentas masmorras da DISA, polícia secreta de Agostinho NETO/MPLA. Mas, quando num rasgo de ingenuidade, pensei ser o mais novo preso político, eis que na Casa da Reclusão, estava um menino de 12 anos, de nome Joy, que, felizmente, não morreu e hoje é engenheiro de petróleos. E nessa mal-aventurada empreitada, “o guia imortal”, “o político profundamente humano”, como o “marketing tacanho” do regime propaga ainda hoje e de forma acéfala ter sido Agostinho Neto, ao mostrar tamanha insensibilidade no seu desempenho, “promulgando as listas de morte” levantadas pela “corte de sangue”, ter-se-á, para muitos, transformado no “político profundamente assassino”, com o seu apogeu a estatelar-se na lama, no genocídio de 27 de Maio de 1977. Isso, por ter sido Neto e, mais ninguém, que baloiçando numa cadeira, no palácio presidencial, disse: “não vamos perder tempo com julgamentos”. E não perdendo tempo, o tempo perdeu-se na selvajaria de um homem, cujo traço de líder se esfumou a sua verdadeira menoridade intelectual. Enterrando, à força, a balança da justiça atirou às urtigas os preceitos da mesma: imparcialidade, sensatez e frieza, apanágio dos grandes líderes nos momentos de divergências internas. Mostrou, aliás, que não basta ser um homem grande (e não era o caso) para se ser um grande Homem. Mostrou, como outros na actualidade, que se o valor dos angolanos se medisse pela sua estatura moral, ética e patriótica, Agostinho Neto amesquinhava-nos a todos. Mostrou-se sempre, mais ou menos, parcial, sobretudo depois de ter tomado partido irreversível pela ala liderada pelo seu padrinho e confidente, Lúcio Barreto de Lara, contra quem conseguiu unir as lianas da guerrilha, no 1º Congresso do MPLA, realizado em 1974, em Lusaka, Alves Bernardo Baptista. Terá sido esta opção digna do perfil de um líder, num momento de crise? Recordo que um líder não se constrói por decreto. Ou se é ou não vale a pena continuar. Nito Alves, o jovem e histórico comandante da 1ª Região que o havia salvado de morte (política) súbita no conclave de Lusaka, na capital da Zâmbia, quando a maioria dos militantes do interior e exterior estavam contra a direcção do partido, três anos depois viu-se cobardemente abandonado pelo homem que ele tinha salvado, Agostinho Neto, e sem possibilidade de esgrimir os seus argumentos em fórum próprio. Era latente a abissal diferença entre a gigantesca estatura moral e humana de um e o nanismo de outro. Nito Alves travou uma luta titânica contra o tempo, por se ter dilatado voluntária ou involuntariamente o prazo de dois meses dado pelo Comité Central à Comissão de Inquérito liderada por José Eduardo dos Santos para ouvir os acusados. A estratégia foi masoquista, pois passava-se a ideia, para o público de um hipotético inquérito, mas a máquina, os bastidores tinha instruções para frear a sua marcha, pois o destino dos acusados já estava traçado. Hoje dir-se-ia que as “ordens superiores” eram claras: Até prova em contrário (que nunca poderia existir) Nito Alves era culpado. Não havia espaço para inocentes, muito menos para exercitar o contraditório. Assim, não houve qualquer inquérito. Catalogado como culpado, antes de qualquer juízo imparcial e isento, escancarou-se-lhe o coração, num impulso de irreverência, para, num último grito do Ipiranga, explicar aos membros do Comité Central e organizações sociais do MPLA, a injustiça que campeava contra a sua pessoa e companheiros de infortúnio. Com todos os campos minados, com a maquinação no seu esplendor, a única companheira era a frustração, que lhe permitiu encarar de frente, erecto como sempre, a cobarde e assassina muralha de betão, ardilosamente min- istrada na comunicação social, por Costa Andrade “N’dunduma” e Artur Pestana “Pepetela”, que, numa premonição impressionante, para além da diabolização, previram todo o cenário posterior. Pepetela é um escritor reconhecido no exterior, aqui mesmo, em Portugal, ganhou prémios, mas tem as mãos manchadas de sangue, por ele passaram muitos atirados para os campos de fuzilamento, pois foi um dos ideólogos da celebre Comissão das Lágrimas. Não lhe ficava mal, pelo contrário, um pedido de desculpas às vítimas e aos filhos, sobre a sua nebulosa participação no genocídio. Foi por isso que, Nito Alves apontou baterias para um “túnel escapatório”: “As 13 Teses em Minha Defesa”, uma visão comunista baseada em fórmulas marxistas-leninistas, que ingenuamente acreditou ser a linha defendida por Agostinho Neto. Os bons também se enganam. O Presidente da RPA e do MPLA acreditava sobretudo no não-alinhamento e no liberalismo económico e muito menos no socialismo científico, que publicamente advogava. Por essa razão, foi severamente insensível, e responsável, talvez não a 100, mas a 90%, pelas mais graves atrocidades cometidas na história da Angola independente. Ninguém, de forma imparcial, poderá afirmar se Agostinho Neto era um idealista como líder político, ou se carregava uma costela assassina incubada, mas seguramente é obrigado a rememorar, por exemplo, a crise de 1963 do MPLA e as que se seguiram, para entender melhor a mentalidade oblíqua deste médico, casado com uma portuguesa, líder político por convite e talvez poeta da África lusófona com algum talento por veia epidérmica, que presidiu por dois anos ao destino da República Popular de Angola, depois de ter esmagado com o apoio de forças mercenárias cubanas, russas, guineenses, moçambicanas e argelinas, a oposição política da FNLA, que contava com o apoio das tropas zairenses, e a UNITA, que se tinha aliado em desespero de causa aos racistas Sul-africanos. Mas o pendente mais penoso de uma data tão polémica quanto dramática, deve ser analisado com o rememorar de um percurso sinuoso dos trilhos por que passou a história do MPLA, enquanto movimento de libertação, estrela do excometa soviético. Particularmente, ao comemorarmos 40 anos, sobre uma data onde os rios cobertos de sangue de corpos inocentes, cruzaram o oceano da monstruosidade assassina, esperava, mais uma vez, ingenuamente, que o ex-coordenador da Comissão de Inquérito e actual presidente do MPLA e da República, José Eduardo dos Santos tivesse a latitude de escancarar as portas, para um “AMPLO DEBATE DA VERDADE E CONCILIAÇÃO SOBRE O 27 DE MAIO DE 1977”. Não era preciso imitar Nelson Mandela, mas aprender com a grandiosidade dos seus gestos, como se escreve reconciliação e paz, na geografia de um país. E Angola carece... Esqueci-me, de as nuvens carregadas, qual cobardia, não conseguem libertar a chuva, para regar a relva da dor e do recalcamento que campeia, na pureza dos nossos corações, mas, ainda que se adie, temos a cumplicidade da actual Constituição de Fevereiro de 2010 de Angola, considerar que estes crimes, art.º 61.º (Crimes hediondos e violentos): “São imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia e liberdade provisória, mediante a aplicação de medidas de coacção processual: a) o genocídio e os crimes contra a humanidade previstos na lei; b) os crimes como tal previstos na lei. Por tudo isso temos o amanhã do futuro e o hoje do presente, para orar por uma justiça, não só divina, mas também terrena, pese nos catalogarem como “vencidos”, “derrotados”, a realidade mostra que a nossa magnanimidade ultrapassa esse rótulo, porque a contrário dos nossos detractores, não temos medo de falar, de ouvir, de reconhecer erros, de apontar virtudes e sugerir soluções para uma verdadeira conciliação e pacificação. Somos sofredores, humilhados, mas dignos, pois temos dimensão de um longo e verdadeiro sentido de perdão. Por tudo isso, junto a minha voz, às vozes anónimas que gritam, neste século XXI, por uma conciliação que clama por certidões de óbito, para que milhares de meninos possam ver coberto os seus documentos com os apelidos dos progenitores. Finalmente, lanço desta tribuna um desafio ao MPLA e ao senhor Presidente da República, José Eduardo dos Santos, libertem-se do fantasma, abram o dossier sobre o 27 de Maio de 1977, a bem da cidadania e do futuro de Angola e dos angolanos.