Jornal Cultura

O VALOR DO GADO

NA CULTURA DOS AMBÓS E NYANEKA-HUMBI

- DOMINGOS CALUCIPA | Ondjiva

Que o Cunene é uma província com grande tradição na criação de gado bovino, ombreando com as vizinhas Huila e Namibe, muitos sabem. Mas que o usufruto desse mesmo potencial ganadeiro para o auto-sustento dos seus donos deve obedecer a determinad­as regras culturais, poucos sabem. A fama de que a província é rica em gado corre pelo país, pois são mais de um milhão de cabeças, que chegam a superar numericame­nte a população humana local, que ronda nos 950 mil habitantes, conforme dados do último senso.

Para os povos ovambo ( kwanhamas, mumbadjas e muvales) e nyaneka- humbi o gado representa tudo nas suas vidas. O boi constitui a sua principal riqueza, um símbolo cultural, e ao mesmo tempo um sinónimo de ostentação e de honra.

Mas há uma pergunta que surge com bastante frequência quase por todo o país: sendo o povo do Cunene detentor de muito gado, por que razão tem passado por carências de vária ordem?

A resposta é dada por João Haimbodi, de 65 anos, um criador tradiciona­l nato de bovinos e caprinos. O criador sustenta que na cultura dos povos locais, o gado bovino é um recurso bastante valioso e sagrado. É considerad­o uma reserva, um banco, que só se deve tocar em situações de extrema a lição, como a morte de um familiar, ou em festas tradiciona­is.

Na cultura dos ambó, particular­mente, todo o homem que faz parte da tribo deve possuir gado bovino e um eumbo (kimbo) para ser considerad­o e respeitado, seja qual for a sua ocupação na sociedade, amponês, operário, funcionári­o do Estado, empresário ou intelectua­l.

Por norma, um criador tradiciona­l nunca diz o número de cabeças de gado que possui, para evitar ser invejado. É ainda uma prática todo o criador espalhar sigilosame­nte parte do seu gado em currais de amigos, como reservas, isto para evitar que, em caso de sua morte, os sobrinhos, ilhos da irmã, que são os herdeiros, não iquem com tudo, em prejuízo dos ilhos.

Em situação de óbito de um membro da família, é sacri icada uma ou mais cabeças para alimentar os participan­tes, independen­temente da idade ou da importânci­a da igura perdida. Num acontecime­nto desta natureza em que não se abate cabeça, o chefe da família ou a pessoa que acolhe o infausto é desprezada pela comunidade, e do mesmo poucos participam.

O abate de uma ou mais cabeças no óbito, onde a carne deve ser consumida na totalidade, é sinonimo de orgulho da família que perdeu o membro. É uma prática sagrada, pois para além de alimentar as pessoas presentes é um símbolo de nobreza.

Mas é mesmo o efundula (festa de puberdade feminina) e no casamento tradiciona­l, que arrastam multidões nas aldeias, onde o boi deixa de ser uma mera riqueza guardada. Nestas cerimónias chega-se mesmo a abater dez ou mais cabeças. São os momentos de muita fartura de carne.

No caso do efundula, a quantidade de cabeças a abater depende do número das meninas envolvidas na puberdade. Em muitos casos, cada uma delas chega a bene iciar de dois bovinos machos, que devem estar sempre bem nutridos, oferecidos pelo pai.

Na doença

Para os ambó e os nhaneka-humbi em caso de doença de um membro da família, seja qual for a gravidade, di icilmente o gado serve de recurso para salvar a vida. Ou seja, raras são aquelas famílias que pegam numa ou duas cabeças para vender e com o dinheiro tratarem da saúde do seu ente.

Nestas situações, muitos são eivados pela ganância dos bois, se se retira um animal, o número no curral vai reduzir, já que a tendência é ver a manada a crescer cada vez mais. Outros agem da mesma forma por pensarem que, se o individuo doente morre, eles têm a chance de herdarem os bens, sobretudo o gado.

“Quando alguém está doente, a família não mexe nos animais para vender e salvar a vida, levam-no só ao hospital, aguardando por um milagre. Dizem sempre que não têm nada, e os bois que se encontram nos currais deles não lhes pertencem”, disse João Haimbondi.

O mesmo acontece em situações de fome. Muitos preferem sofrer com a crise alimentar dentro das suas casas a abaterem ou vender uma cabeça para o sustento da família. O que se diz é que “isso vai passar já”.

Há quem chega a perder várias unidades da sua manada por causa da estiagem, sem sequer comerciali­zar uma.

As multas

Na cultura local, o boi é também uma mercadoria que serve para pagar determinad­as multas pela violação de certas normas tradiciona­is ou por de-

terminados crimes cometidos.

Por exemplo, quem tira a vida de outra pessoa deve pagar a família da vítima entre seis a doze cabeças. Quem tira uma vista a outrem lhe são cobradas duas a três cabeças.

Já quem tira o dente de alguém assujeita-se a pagar igualmente dois a três bovinos, não importando o tamanho do animal. O pagamento é de cumpriment­o obrigatóri­o, ainda que passem alguns anos.

Quando se trata de adultério cometido por uma mulher, o homem com quem esta se envolveu é submetido a uma multa que vai de uma a duas cabeças. Engravidar uma jovem que ainda não fez puberdade dá também boas multas, mas somente na hora de ir efectuar o pedido do casamento, pois considera-se que o homem violou a tradição. Nestas condições, o “infractor” é obrigado a pagar a cabeça que serviria para o efundula da moça e arcar com todas as despesas da festa, para além de pagar os artigos pedidos na carta.

A festa do gado

Entre os diferentes rituais dos ambó está também o edano leengobe (festa do gado), uma festa tradiciona­l, que tal como outras não deixa de arrastar gente, que consiste numa competição do gado bovino vindo de diferentes localidade­s, onde é classi icado o melhor animal quanto a qualidade e ao peso. Esta cerimónia, normalment­e realizada entre os meses de Junho e Agosto de cada ano, tem como grande inalidade a demonstraç­ão de ostentação por parte dos criadores. Normalment­e participam aqueles criadores com um verdadeiro potencial ganadeiro, e durante o evento são abatidas várias cabeças para o consumo dos participan­tes.

O vencedor da competição, segundo João Haimbodi, não recebe qualquer prémio material, pelo contrário ele tem a obrigação de recompensa­r o pastor do seu gado com algum bem, por ter sido o responsáve­l pela qualidade apresentad­a pelos animais.

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