Beijo na boca
Anda por aí uma onda beijoqueira. Beijo na boca. Mas não é de adulto para adulto (os casais aqui na banda abraçam-se, mas não se beijam em público), o beijo na boca aqui é de adulto para criança e de criança para criança. Isso é preocupante. Causa arrepio aos bons usos e costumes. Vos conto.
Domingo, dia 6 de Novembro, na cidade histórica de Mbanza Kongo. Estava eu a ver o jogo Porto-Benfica na recepção do hotel. Um casal de jovens refastelados nos sofás ao meu lado devoravam hambúrgueres.
Nisto, surge da sala de jantar uma menina de três anos. Aproxima-se da nossa mesinha de centro. Balbucia qualquer coisa, sorridente, que o moço do hambúrguer entende como gula e, vai daí, corta um pedaço de pão com bife e ovo e cebola tostada e maionese e queijo e mete-o na mão da miúda. Pensei cá para comigo: devem ser os pais da menina.
A miúda ficou por ali, de sorriso majestoso, fala que fala, até devorar o pedaço de hambúrguer. “Que família feliz!”, pensei. Concentrei-me no jogo. O Benfica estava a perder por um a zero. Quando voltei a pôr os olhos no jantar hamburguífero, o moço estava prestes a dar de beber, pela tampa de alumínio aberta, da sua lata de gasosa à menina.
Nesse instante, surge na sala um outro jovem alto e chama: “filha, vem ao papá!” A miúda corre e o pai ergue-a nos braços. Conversam efusivamente. O verdadeiro pai da menina propõe, já de saída da recepção do hotel: “ah, os tios deram comida? Então vai lá e dá um beijo nos tios.”
A miúda salta para o chão, aproxima-se do jovem do hambúrguer e este, para meu espanto, dá-lhe um beijo nos lábios. Beijo na boca! A seguir, a menina aproxima-se da moça ao lado que repete a cena. Dá um beijo na boca da criança, um beijo ainda com pedaços do hambúrguer nos lábios. A menina de três anos vem ter comigo, também queria o meu beijo na boca dela.
Segurei no seu rosto com ambas as mãos e dei-lhe um beijo na testa.
- Não se beija uma criança na boca! – expliquei.
Os pais da criança e os “tios” do hambúrguer ficaram ali a olhar para mim, como se estivessem a ver um extraterrestre. Deduzi então que nunca ninguém jamais ensinou àquela geração a forma apropriada de beijar uma criança. Na testa. Nunca na boca.
Virou hábito em Angola a promiscuidade labial com as crianças. A maior parte das pessoas não estão cientes dos riscos de contágio de algumas doenças, desde tuberculose, hepatites, infecções…
Até porque beijar um bebé na boca é didacticamente inútil. Ainda há dias, estava eu numa sala de espera de uma repartição pública em Luanda e os dois filhos da mãe sentada à minha frente – um rapazito de cinco e uma menina de um ano – se beijavam divertida e repetidamente na boca, enquanto durou a minha permanência no local. Assim de brincadeira. Como diz aquela música “infantil” brasileira: “foi de brincadeira/ eu me apaixonei..”, como se uma criancinha soubesse já ou tivesse já o dever de se apaixonar. Livre-nos Deus Nosso Senhor dessas brasileirices! A mãe das crianças à minha frente olhava e nada dizia. Isso fez me adoecer a alma: já se generalizou o hábito de molhar a boca das crianças com a saliva de outra boca.
Se isso fosse um caso isolado, nada haveria a recear, nem eu teria de escrever esta crónica. Se a escrevo, é porque em várias ocasiões tenho visto mães zungueiras e outras a beijarem na boca os seus bebés de tenra idade, tenho visto, como vi naquele dia, crianças pequenas e se beijarem boca na boca. Tratar-se-á de um fenómeno natural que Freud nunca explicou? Influência das novelas? Ou será nova moda que o mwangolé inventou?
Cá para mim, acho essa moda um absurdo. Uma aberração de todo o tamanho. Não se dá beijo na boca das crianças. Beija-se as crianças na testa. Pelo menos, assim me ensinou uma mais velha que ainda vive no Maculusso. Para além de riscos para a saúde e para a libido precocemente estimulada, nada de útil para a vida se transmite à criança.
Que as autoridades do INAC e do Ministério da Saúde reflictam sobre este novo costume absurdo e aberrante. Que os órgãos da Comunicação Social reeduquem as famílias e toda a população: “Não se dá beijo na boca de uma criança.”