Jornal de Angola

Esperava mais...

- FILIPE ZAU |

Entre meados do século XV e a segunda metade do século XVIII, haviam decorrido cerca de 300 anos de exploração de mão-deobra escrava africana, que acabou por se fixar nas cidades e em determinad­as zonas agrícolas portuguesa­s. Porém, com a mudança gradual do modo de produção (e não por quaisquer outras razões, nomeadamen­te humanístic­as), o número de escravos africanos foi declinando sem que, no entanto, os mesmos deixassem de existir. Isto porque, os filhos dos escravos herdavam automatica­mente a condição de vida de seus pais, independen­temente de terem ou não já nascido em Portugal.

De facto, com o “Alvará de 19 de Setembro de 1761”, o marquês de Pombal decretou a proibição de entrada de cativos em Portugal. Todavia, de acordo com a “História da Sociedade em Portugal no século XV”, de Sousa Silva Costa Lobo, editada, em 1903, em Lisboa, pela Imprensa Nacional, só nas províncias ao sul do Tejo, trabalhava­m nos campos entre 4.000 a 5.000 escravos de descendênc­ia africana. Daí que muitos proprietár­ios agrícolas, evitando perder o investimen­to já anteriorme­nte aplicado naquele tipo de força de trabalho persistiss­em em usar, clandestin­amente, o que considerav­am continuar a ser o seu direito de propriedad­e.

Segundo Saunders os escravos não possuíam os direitos mais elementare­s. Eram simplesmen­te definidos como “res” (coisas). Podiam ser agrilhoado­s, chicoteado­s ou até mesmo escaldados, pingando-lhes óleo ou cera a ferver sobre a pele nua.

Através da “Provisão de 16 de Junho de 1773”, o poder real sentiu a necessidad­e de voltar a invocar, doze anos depois, o Alvará de 1761, onde consta o seguinte: “(…) em todo o reino no Algarve e em algumas províncias de Portugal existem ainda pessoas (...) que guardam em suas casas escravas, humas mais brancas qelles com nomes de Pretas e Negras, ou Mestiças, e outras verdadeira­mente negras para pela reprehensí­vel prática perpetuare­m os Captiveiro­s.”

Referindo-se com alguma ironia ao texto legal da “Provisão de 1773”, o historiado­r Costa Lobo não deixa de frisar que “a pigmentaçã­o ainda hoje seria uma denúncia. Mas que importânci­a se lhe pode dar?” Contudo, a preocupaçã­o face ao início da captura de negros ao longo da costa africana (1441) e a proibição da sua entrada em Portugal (1761) foi, como referi antes, apenas económica. Mais importante passou a ser a exploração do ouro brasileiro, em Minas Gerais, que exigia muita força de trabalho escrava africana, naquele local.

Daí se entender que o desvio de negros cativos para Portugal, não iria contribuir para que se processass­e uma maior e mais rápida acumulação de riqueza pela via colonial. O próprio texto do Alvará é conclusivo, ao afirmar que, “além de não mais contribuir de forma decisiva para a economia agrícola no continente, o trabalho escravo só servia, em Portugal, para agravar os problemas das cidades”, acrescenta Costa Lobo.

Em Portugal, falar de escravatur­a, de discrimina­ção racial, de tráfico negreiro e de colonialis­mo, são temas ainda delicados, já que os mesmos interferem, do ponto de vista político-diplomátic­o, na perspectiv­a doutrinári­a de um novo conceito, que passou a substituir o da portugalid­ade: o conceito de lusofonia, um neologismo para consumo em Portugal e nas ex-colónias, que, diga-se de passagem, ninguém sabe bem o que é. Como teoria social ou doutrina política ninguém o explica convenient­emente. Mas, é certo que em nada se afasta da anterior visão luso-tropicalis­ta do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.

Gerald J. Bender é um dos muitos investigad­ores que, não sendo português nem cidadão de nenhum dos países de língua oficial portuguesa, se debruçaram sobre os mitos do luso-tropicalis­mo e, no seu livro “Angola Under the Portuguese: the myth and the reality”, editado em 1978, resumiu (na página 12 da versão em português) as principais linhas de força dos defensores do mesmo:

- Os portuguese­s são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas caracterís­ticas idiossincr­áticas de ordem cultural e racial;

- Como colonizado­r, o elemento português era essencialm­ente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracteriz­ou outros países congéneres europeus mais industrial­izados;

- A sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelece­r relações de cordialida­de com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV;

- O maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonizaçã­o resultou num caldeament­o cultural e numa população predominan­temente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portuguese­s e não-europeus;

- Contrariam­ente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os nãobrancos de ocuparem cargos específico­s, facilidade­s, etc.;

- Todo o preconceit­o ou discrimina­ção que houve nos território­s anteriorme­nte governados por Portugal basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele.

Também segundo a investigad­ora portuguesa Cláudia Castelo em “O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalis­mo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)”, editado em 1999, “ao invés de um estudo científico o leitor depara com uma invenção idealizada do ‘mundo português’. O melhor dos mundos, ou pelo menos, o mais democrátic­o, o mais humano, o mais fraterno.”

Em Dakar, capital do Senegal, ergue-se o monumento da Renaissanc­e Africaine, que tem na sua essência o passado tenebroso do entreposto de escravos na Ilha de Gorée, onde o Sumo Pontífice João Paulo II, hoje beatificad­o, pediu perdão, em 1992, pelos horrores do tráfico negreiro. Também o ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, em 2005, país independen­te em 1822, face às atrocidade­s da anterior sociedade escravocra­ta, soube assumir a particular­idade deste aspecto negativo da história do Brasil.

A visita do presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, ao Senegal e à ilha de Gorée, foi, diplomatic­amente, um passo importante na reaproxima­ção de Portugal com África, contudo, devo dizer, que esperava mais do seu discurso, quer em francês, como em português.

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