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Entre meados do século XV e a segunda metade do século XVIII, haviam decorrido cerca de 300 anos de exploração de mão-deobra escrava africana, que acabou por se fixar nas cidades e em determinadas zonas agrícolas portuguesas. Porém, com a mudança gradual do modo de produção (e não por quaisquer outras razões, nomeadamente humanísticas), o número de escravos africanos foi declinando sem que, no entanto, os mesmos deixassem de existir. Isto porque, os filhos dos escravos herdavam automaticamente a condição de vida de seus pais, independentemente de terem ou não já nascido em Portugal.
De facto, com o “Alvará de 19 de Setembro de 1761”, o marquês de Pombal decretou a proibição de entrada de cativos em Portugal. Todavia, de acordo com a “História da Sociedade em Portugal no século XV”, de Sousa Silva Costa Lobo, editada, em 1903, em Lisboa, pela Imprensa Nacional, só nas províncias ao sul do Tejo, trabalhavam nos campos entre 4.000 a 5.000 escravos de descendência africana. Daí que muitos proprietários agrícolas, evitando perder o investimento já anteriormente aplicado naquele tipo de força de trabalho persistissem em usar, clandestinamente, o que consideravam continuar a ser o seu direito de propriedade.
Segundo Saunders os escravos não possuíam os direitos mais elementares. Eram simplesmente definidos como “res” (coisas). Podiam ser agrilhoados, chicoteados ou até mesmo escaldados, pingando-lhes óleo ou cera a ferver sobre a pele nua.
Através da “Provisão de 16 de Junho de 1773”, o poder real sentiu a necessidade de voltar a invocar, doze anos depois, o Alvará de 1761, onde consta o seguinte: “(…) em todo o reino no Algarve e em algumas províncias de Portugal existem ainda pessoas (...) que guardam em suas casas escravas, humas mais brancas qelles com nomes de Pretas e Negras, ou Mestiças, e outras verdadeiramente negras para pela reprehensível prática perpetuarem os Captiveiros.”
Referindo-se com alguma ironia ao texto legal da “Provisão de 1773”, o historiador Costa Lobo não deixa de frisar que “a pigmentação ainda hoje seria uma denúncia. Mas que importância se lhe pode dar?” Contudo, a preocupação face ao início da captura de negros ao longo da costa africana (1441) e a proibição da sua entrada em Portugal (1761) foi, como referi antes, apenas económica. Mais importante passou a ser a exploração do ouro brasileiro, em Minas Gerais, que exigia muita força de trabalho escrava africana, naquele local.
Daí se entender que o desvio de negros cativos para Portugal, não iria contribuir para que se processasse uma maior e mais rápida acumulação de riqueza pela via colonial. O próprio texto do Alvará é conclusivo, ao afirmar que, “além de não mais contribuir de forma decisiva para a economia agrícola no continente, o trabalho escravo só servia, em Portugal, para agravar os problemas das cidades”, acrescenta Costa Lobo.
Em Portugal, falar de escravatura, de discriminação racial, de tráfico negreiro e de colonialismo, são temas ainda delicados, já que os mesmos interferem, do ponto de vista político-diplomático, na perspectiva doutrinária de um novo conceito, que passou a substituir o da portugalidade: o conceito de lusofonia, um neologismo para consumo em Portugal e nas ex-colónias, que, diga-se de passagem, ninguém sabe bem o que é. Como teoria social ou doutrina política ninguém o explica convenientemente. Mas, é certo que em nada se afasta da anterior visão luso-tropicalista do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre.
Gerald J. Bender é um dos muitos investigadores que, não sendo português nem cidadão de nenhum dos países de língua oficial portuguesa, se debruçaram sobre os mitos do luso-tropicalismo e, no seu livro “Angola Under the Portuguese: the myth and the reality”, editado em 1978, resumiu (na página 12 da versão em português) as principais linhas de força dos defensores do mesmo:
- Os portugueses são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas características idiossincráticas de ordem cultural e racial;
- Como colonizador, o elemento português era essencialmente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracterizou outros países congéneres europeus mais industrializados;
- A sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelecer relações de cordialidade com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV;
- O maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonização resultou num caldeamento cultural e numa população predominantemente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portugueses e não-europeus;
- Contrariamente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os nãobrancos de ocuparem cargos específicos, facilidades, etc.;
- Todo o preconceito ou discriminação que houve nos territórios anteriormente governados por Portugal basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele.
Também segundo a investigadora portuguesa Cláudia Castelo em “O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961)”, editado em 1999, “ao invés de um estudo científico o leitor depara com uma invenção idealizada do ‘mundo português’. O melhor dos mundos, ou pelo menos, o mais democrático, o mais humano, o mais fraterno.”
Em Dakar, capital do Senegal, ergue-se o monumento da Renaissance Africaine, que tem na sua essência o passado tenebroso do entreposto de escravos na Ilha de Gorée, onde o Sumo Pontífice João Paulo II, hoje beatificado, pediu perdão, em 1992, pelos horrores do tráfico negreiro. Também o ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, em 2005, país independente em 1822, face às atrocidades da anterior sociedade escravocrata, soube assumir a particularidade deste aspecto negativo da história do Brasil.
A visita do presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, ao Senegal e à ilha de Gorée, foi, diplomaticamente, um passo importante na reaproximação de Portugal com África, contudo, devo dizer, que esperava mais do seu discurso, quer em francês, como em português.