Jornal de Angola

Carlos Duarte…o Ferrovia!

- Harriett Baldwin |*

Estava a acabar de ver um debate interessan­te numa televisão portuguesa sobre a era informátic­a, robotizaçã­o e cª. O que faria a nova geração com a herança informátic­a. Mudei de canal. Um cota mestiço (assim falava o entrevista­dor no Porto Canal para evitar mulato) sentado num sofá respondia às perguntas. Tinha sido um dos maiores astros do futebol do Porto e de Portugal. Senti uma ligação magnética com o entrevista­do, pela voz que mal se entendia, longínqua de mais de oitenta e muitos anos, o tempo passa e quando alguém que não vemos faz muito tempo, não os conhecemos por termos envelhecid­o também pela distância, tempo, lugar e modo. O entrevista­dor foi falando sobre as glórias daquele que já havia sido distinguid­o com o dragão de ouro, galardão máximo que o clube atribuía. A conversa arrastou-se pela lembrança do rol de treinadore­s e o entrevista­do, salientou Otto Bumbel…”porque dava instruções a cada jogador antes do jogo e a mim dizia para depois do meio campo ficar livre e fazer ou dar a fazer golo… e no miolo, alguém punha a mão na cabeça, eu, da extrema-direita, colocava a bola na cabeça dele e era golo, bons tempos, você sabe tudo, como?” “São registos históricos, investigaç­ão, lembrase que, pela selecção portuguesa você fez o primeiro golo em Wembley.” Sim…sim!”

Fiquei emocionado. Eu e meu irmão mais velho tínhamos ido ouvir esse relato num vizinho que tinha rádio e ouvimos o famoso Artur Agostinho gritar o golo. Era o Carlos Duarte. O entrevista­dor lembrou que Carlos Duarte, com dezanove anos, viajara para Portugal e o destino era jogar no Porto. E que no mesmo barco viajara outro futebolist­a, moçambican­o, Albasini, também para o Porto. E que em Nova-Lisboa, naquele tempo, no clube do Caminho de Ferro de Benguela, o Ferrovia, só podiam jogar brancos e Carlos Duarte era tão bom que se renderam para o colocarem a trabalhar na companhia e jogar a avançado-centro “e você tinha como ídolo o Travassos do Sporting.” “Sim, sim, como você sabe tudo, aqui fui para ponta direita, não aguentavam a minha corrida e depois ou flectia e disparava ou passava para um colega rematar.” Levava muita porrada e uma vez, depois de tanto levar e o árbitro nada fazer, o Carlos respondeu e foi expulso.” “É verdade, levei muita porrada, ainda estive um tempo longo lesionado, os árbitros eram contra nós e só ajudavam o Benfica, sabe, viemos para cá, alojaram-nos num apartament­o e por cá fiquei com gente muito boa, andei em ombros e uma vez os africanos que viviam aqui andaram comigo às costas ao longo da avenida quando ganhámos um campeonato, o nosso jogo acabou primeiro e ficámos à espera do resultado do Benfica, foi uma grande festa com malta jeitosa. Esta é a minha cidade, quiseram-me comprar para Itália mas não deixaram como fizeram mais tarde como Eusébio e se fosse hoje… estava milionário” Estou a ficar com a memória passada num tempo em que tanto se fala em memória futura. O Carlos Duarte para nós passou a ser um ícone de nome Ferrovia. Um dia o Porto veio a Angola e também para jogar em Nova-Lisboa no campo Engenheiro Marques Trindade, onde eu também joguei e ganhei medalha e faixa de campeão de juniores. Quando os clubes de Portugal chegavam Nova-Lisboa mudava de cara. Eram distribuíd­as bandeiras do clube às crianças, o campo ficava a abarrotar e naquela vez com uma razão maior, ver jogar o Ferrovia. Juntámo-nos com o Ferrovia na modesta casa do Carinhas. O Ferrovia era só ele que falava, nós só ouvíamos e em cada um de nós quase brilhava a esperança num destino igual.

Fiquei agarrado a toda a entrevista e no fim, limpando uma lágrima pensei em falar com o Arlindo Leitão dos futebóis da rádio para fazermos uma subscrição e trazermos ao Huambo o Ferrovia. Quando o entrevista­dor tocou numa das feridas, o racismo no clube de Angola, Carlos Duarte não detalhou e passou à frente. Ia estragar a entrevista, seria o mesmo que numa entrevista sobre museu das descoberta­s alguém abrir o livro, não da escravatur­a mas do esclavagis­mo como sistema.

As oficinas dos Caminhos de Ferro de Benguela, num bairro extremo da cidade, haviam herdado o racismo de Robert Williams que mandara (porque ele é que mandava) Norton de Matos organizar o assassinat­o de todos os reis do planalto que guerreavam a ocupação e consequent­emente a construção pacífica da linha. Depois, a companhia tinha um bairro que era uma cidade dentro de outra com bonitos chalés de madeira para os funcionári­os brancos, importava jogadores de Portugal, os brancos recebiam os salários num lugar e os negros e mestiços noutro com tabelas salariais diferentes. Quando lhe falaram no Ferrovia racista, Carlos Duarte, engoliu em seco, diplomatic­amente, porque não revelou que embora jogando na equipa principal do Ferrovia não podia usar a piscina que tinha uma tabuleta: só é permitida a entrada a brancos. Estou ainda emocionado e recordo, estávamos em Nova Iorque, no Harlém e Diógenes Boavida contava que quando jogou aqui em Luanda havia colonos que gritavam, matame esse preto! Um dia veio a Luanda jogando no Futebol Club do Porto que ganhou…e foi levado em ombros pelos brancos a gritar Boavida, Porto!

Em Nova-Lisboa, naquele tempo, no clube do Caminho de Ferro de Benguela, o Ferrovia, só podiam jogar brancos e Carlos Duarte era tão bom que se renderam para o colocarem a trabalhar na companhia e jogar a avançado-centro “e você tinha como ídolo o Travassos do Sporting.”

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