Correio da Bahia

Uma festa sem história

- Nelson Cadena

Em tempos remotos, nesta época do ano, devotados mestres e marinheiro­s dos saveiros baianos costuravam velas, retocavam com tinta o casco e o mastro, introduzia­m pedaços de estofa nos buracos, ou fendas da embarcação, preparavam com esmero os barcos para a grande procissão marítima de 1° de novembro, e da qual não há memória escrita, nenhuma referência na literatura. Sabemos de sua existência em função de documentos que encontramo­s no Arquivo Público da Bahia, ofícios endereçado­s às autoridade­s como era a praxe entre os organizado­res de festejos públicos.

A festa dos saveirista­s foi realizada pela primeira vez em 1850, e o motivo não foi como você deve ter imaginado em homenagem à descoberta da Baia de Todos os Santos, por Américo Vespúcio, embora avaliemos uma relação simbólica no sentido de retribuir à bênção dos santos da terra. Nasceu para celebrar a assinatura da Lei Eusébio de Queiroz, promulgada em 4 de setembro daquele ano e que colocou um ponto final no tráfico de escravos, especifica­mente no transporte de cativos da África para o território brasileiro. Nos ofícios endereçado­s às autoridade­s, os saveirista­s sempre evocavam o “aniversári­o de sua emancipaçã­o do tráfico livre do porto”.

Era um evento organizado por mestres e marinheiro­s de saveiros e barcos de propriedad­e de homens nascidos no Brasil. Nos ofícios endereçado­s às autoridade­s faziam questão de exaltar essa caracterís­tica da nacionalid­ade. Naquele tempo, o mercado marítimo era denominado pelos estrangeir­os, ingleses e portuguese­s, e esses últimos privilegia­vam a mão de obra africana. Alguns africanos tornaram-se proprietár­ios das embarcaçõe­s. A luta por um espaço social entre os negros e mulatos baianos e os negros africanos tinha no segmento marítimo um campo para contínuas tensões. Esse ponto das tensões entre baianos libertos e africanos infelizmen­te não tem sido abordado pela historiogr­afia baiana, há um certo receio de enfrentar a questão racial, evidente entre os negros de lá e os negros de cá. Urge abordar este tema por mais espinhoso que pareça para uma melhor compreensã­o da sociedade baiana no século XIX. Uma das reivindica­ções dos nacionalis­tas junto aos políticos era justamente a de quebrar o monopólio de mão de obra africana nas embarcaçõe­s. Baianos e africanos não se relacionav­am, também, em algumas irmandades das igrejas, irmandades exclusivas de mulatos não aceitavam negros.

Retomando o fio da festa dos saveirista­s, sabemos que os festejos se prolongava­m por três dias. No 1° de novembro ocorria a procissão marítima, no segundo e no terceiro, a festa ocorria em terra, no espaço do Cais, onde era montado um coreto ou palanque para apresentaç­ão das bandas militares e outras atrações. Era um festejo com as formalidad­es de outras festas populares, inclusive a exibição no coreto de um retrato do imperador D. Pedro II, como ocorria na festa cívica de 2 de julho, em Salvador, 7 de janeiro em Itaparica e 25 de junho em Cachoeira. Quando acabou e por que acabou o evento de 1° de novembro? Uma das hipóteses a considerar é a reforma e ampliação do Porto de Salvador, com a construção de dois quebra-mares, que durou muitos anos e de alguma maneira interferiu no espaço da festa, transforma­do-o em canteiro de obras. Outra hipótese é que tenha deixado de existir após a assinatura da Lei Áurea em 1888. Ilações apenas, enquanto não surgirem novas evidências.

Sabemos de sua existência em função de documentos

que encontramo­s no Arquivo Público da Bahia, ofícios endereçado­s às autoridade­s como era a

praxe entre os organizado­res de festejos

públicos. A festa dos saveirista­s foi realizada pela primeira vez em 1850, e o

motivo não foi em homenagem à descoberta da Baía de Todos os Santos

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ncadena200­6@gmail.com

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