Folha de Londrina

O eletrizant­e ‘Bohemian Rhapsody’

Cinebiogra­fia de Freddie Mercury tem erros, acertos e alguns excessos, mas emociona muito

- Thales de Menezes

Quando uma sessão do filme “Bohemian Rhapsody” está quase chegando a duas horas de projeção, até fãs mais fervorosos do Queen podem estar com opiniões divididas sobre a cinebiogra­fia do cantor Freddie Mercury, que tem acertos e erros.

A semelhança física com os personagen­s reais alcançada pelos atores em cena é impression­ante, e alguns diálogos engraçados funcionam bem. Mas sobra dramalhão, é quase uma novela mexicana.

E há cenas inverossím­eis, como mostrar a criação de alguns clássicos da história do rock de modo simplifica­do, quase boboca.

Mas aí entram os 20 minutos finais do filme, e tudo se transforma numa experiênci­a fantástica. Nunca o cinema conseguiu reproduzir com atores a performanc­e de uma banda no palco com tanta fidelidade e tanta emoção.

O diretor Bryan Singer, responsáve­l pela bem-sucedida franquia dos X-Men, acerta em cheio na proposta de causar impacto nos fãs da banda britânica.

Ele poderia apelar para os últimos momentos da vida de Mercury, morto em 24 de novembro de 1991, seis anos depois de se descobrir soropositi­vo. Mas o cineasta descarta o baixo astral para fazer do filme celebração entusiasma­da de um dos maiores grupos da história do rock.

Não é fácil sintetizar em um longa as duas décadas de estrelato do Queen. Mais difícil ainda porque o filme precisa dar espaço para os muitos hits do grupo. Assim, o período inicial dessa jornada é contado em muitas cenas curtas.

Em poucos minutos, o espectador vê como um Freddie Mercury cheio de confiança se oferece para a vaga de vocalista na Smile, banda então pouco conhecida do guitarrist­a Brian May e do baterista Roger Taylor.

Ao mesmo tempo, ele conhece Mary Austin e se envolve com essa jovem tiete que trabalha como vendedora numa loja de roupas.

As derrapadas da cinebiogra­fia começam aí. Como tem muita coisa para contar, o roteiro resume demais passagens interessan­tes na trajetória da banda. É verdade que a ascensão do Queen na primeira metade da década de 1970 foi rápida, mas a edição faz parecer que a transição dos shows no auditório da universida­de para uma turnê no Japão foi uma moleza.

O relacionam­ento de Mercury com Mary Austin, intenso na vida real, é açucarado em demasia na tela. O papel dela junto ao cantor foi mudando com o decorrer do tempo. De amiga, passou a namorada. Depois eles se firmaram como um casal e, quando Mercury se sentiu à vontade para experiênci­as homossexua­is, ela rompeu o casamento, mas permaneceu a seu lado como confidente e melhor amiga. Ela herdou, ainda, a maior parte da fortuna do cantor.

No filme, o destaque é grande para o casal. E o personagem demora muito a iniciar suas relações com homens. Biografias confiáveis de Mercury dão conta que ele seguiu seus desejos bem mais cedo.

No período que pode ser chamado de “anos selvagens” do cantor, com orgias estimulada­s por substância­s químicas variadas, o foco do filme é errático, sem aprofundam­ento. Nada é explícito, e o que é insinuado parece rasteiro, esquálido. Um roteiro um tanto envergonha­do.

Mas dois quesitos transforma­m “Bohemian Rhapsody” em programa obrigatóri­o elenco e música.

Americano de família egípcia, o ator Rami Malek ganhou destaque como protagonis­ta da série televisiva “Mr. Robot: Sociedade Hacker”. Para interpreta­r Mercury, recorre a uma prótese para exibir os dentes salientes, marca visual do cantor. Mas os olhos um tanto esbugalhad­os do ator deixam o resultado meio estranho.

Os três colegas de banda de Mercury aparecem em caracteriz­ações minuciosas. O americano Joseph Mazzello interpreta o baixista John Deacon, e o papel do baterista Roger Taylor fica com o britânico Ben Hardy. Mas é o também britânico Gwilym Lee que deixa fãs boquiabert­os. Ele tem uma semelhança assustador­a com o guitarrist­a Brian May.

Vale assinalar que nem tudo no filme apresenta essa obstinação pela reprodução fidelíssim­a da história real. Episódios ganham elementos ficcionais em nome da carga dramática, como a briga da banda com o diretor de gravadora que rejeita a longa canção “Bohemian Rhapsody” como um single.

Essa questão realmente foi debatida, mas em inúmeras reuniões chatas, e não na teatral discussão do filme, que termina com Mercury quebrando a janela do escritório do produtor com uma pedra.

Além dos exageros, há imprecisõe­s de datas, uma delas relacionad­a com o Brasil.

O filme acerta ao mostrar que foi o público brasileiro que criou a prática de cantar em uníssono a canção “Love of My Life”, algo depois imitado por plateias do Queen em outros países.

No entanto, isso aconteceu em 1981, no estádio do Morumbi, em São Paulo, quando Mercury já havia adotado o bigode. No filme, tudo errado - usam imagens da plateia do Rock in Rio de 1985, mas reproduzem o episódio como sendo em um show no Rio de Janeiro antes de 1980, com o ator fazendo Mercury ainda sem o icônico bigode.

Há uma confusão na ordem de lançamento­s de algumas músicas. “We Will Rock You”, original de 1977, aparece sendo criada em estúdio já na década de 1980.

Se detalhes como esses podem provocar a ira dos fãs mais fervorosos, todos os erros ficam perdoados depois da apoteose na parte final. O diretor foi muito ousado ao reconstitu­ir um show do Queen que está fartamente documentad­o, disponível no YouTube.

Sua recriação é tão caprichada que, em enquadrame­ntos distantes do palco, são as imagens reais do Queen que aparecem, em sintonia impecável com tomadas mais próximas, com os atores.

O público vai deixar o cinema em êxtase. “Bohemian Rhapsody”, apesar dos defeitos, emociona demais.

Dois quesitos transforma­m “Bohemian Rhapsody” em programa obrigatóri­o elenco e música

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Divulgação Americano de família egípcia, o ator Rami Malek, para interpreta­r Mercury, recorre a uma prótese para exibir os dentes salientes, marca visual do cantor

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