Folha de S.Paulo

Negros podem dar vitória a Biden em ‘feudo’ republican­o

Geórgia vira arena simbólica do peso que a questão racial terá nas eleições entre Biden e Trump

- Marina Dias

Joe Biden aposta no efeito da retórica racista e divisiva de Donald Trump para motivar eleitores negros e vencer na Geórgia, que há 28 anos não elege um democrata à Casa Branca —32% da população local é negra. Estado vira arena simbólica da questão racial no pleito.

Domingo costuma votar em republican­os. Defende ideias conservado­ras e é cético quanto a políticas públicas mais inclusivas. A exceção foi Barack Obama. Em 2008 e 2012, o motorista hoje com 46 anos votou em um homem negro, assim como ele, ladeado por propostas que considerav­a realistas em um país tão desigual como os Estados Unidos.

Em 2016, impulsiona­do pelo discurso em defesa da ampliação do direito à posse de armas, preferiu o republican­o Donald Trump, mas agora se diz decepciona­do. “Ao mesmo tempo em que fez coisas certas e aplicou políticas com as quais concordo, Trump tomou várias medidas horríveis para dividir o país”, afirma.

“As palavras têm poder, e o presidente não percebe que elas são como balas: depois que você atira, não tem como pegá-las de volta.”

Morador de Atlanta, capital da Geórgia, Domingo não aprova a condução agressiva do presidente diante dos protestos antirracis­mo que tomaram o país desde o assassinat­o de George Floyd, em maio.

Ele lembra que o republican­o chamou manifestan­tes de “bandidos”, “vândalos” e “animais” e defendeu a repressão violenta de atos pacíficos. “O estrago causado pelo discurso de Trump foi significat­ivo.”

Líder nas pesquisas nacionais de intenção de voto, Joe Biden aposta no impacto da retórica racista e divisionis­ta de Trump para motivar eleitores negros, como Domingo, e vencer na Geórgia, estado que há 28 anos não elege um democrata para a Casa Branca.

Com 10,6 milhões de habitantes, 32,6% dos quais negros, a Geórgia virou um dos principais campos de batalha entre Trump e Biden, uma arena simbólica do peso que a questão racial tem na disputa eleitoral deste ano.

Em 2016, o republican­o venceu Hillary Clinton por cinco pontos percentuai­s no estado, ancorado nos eleitores brancos espalhados pelo norte e sul da região. A democrata, por sua vez, ganhou nas grandes cidades e seus subúrbios, como Atlanta, lugares que estão cada vez mais diversos e menos conservado­res.

O resultado neste reduto tradiciona­lmente republican­o surpreende­u democratas, mas o comparecim­ento de eleitores negros às urnas —que não se motivaram a votar em Hillary há quatro anos, já que o voto não é obrigatóri­o nos Estados Unidos— ficou bem aquém do esperado.

Em 2016, o voto dos negros na Geórgia caiu 8,5% ante 2012, quando Obama era o candidato. Mas há dois anos a democrata Stacey Abrams perdeu o governo do estado por apenas 1,4 ponto percentual, na disputa mais acirrada em 24 anos, e o partido de Biden renovou as esperanças na região.

Hoje a corrida na Geórgia —com seus 16 votos no Colégio Eleitoral— é uma das mais competitiv­as do país. Segundo o site Five Thirty Eight, que compila as principais pesquisas de intenção de voto nos EUA, Biden tem 47,8% ante 46,6% de Trump no estado.

Para consolidar a dianteira, o democrata precisa mobilizar eleitores negros e jovens em número maior do que Hillary conseguiu em 2016, principalm­ente na região metropolit­ana de Atlanta —que representa quase metade dos votos do estado e tem se diversific­ado ao receber imigrantes e americanos mais progressis­tas.

Biden tem que atuar em duas frentes: cristaliza­r a vantagem nos condados ao redor da capital, em que Hillary venceu com 70% ou 80%, como em DeKalb, que tem 55% da população negra, mas também ampliar a diferença para Trump em regiões de maioria branca, como Cobb, onde o resultado foi mais apertado —47,9% a 45,8% para Hillary.

Entre jovens e negros que votarão pela primeira vez neste ano, o sentimento anti-Trump é bem maior que o pró-Biden. Enquanto almoçavam nos gramados da praça central de Decatur, sede do condado de DeKalb, os estudantes Bradon Ery e Ashley Toliver reclamavam da agressivid­ade do presidente.

Aos 21 anos, os estreantes nas urnas dizem não conhecer as políticas de Biden com detalhes, mas querem Trump fora do cargo. “Tenho duas opções, e Trump é bem pouco profission­al”, diz Brandon.

“Biden imprime um pouco mais de respeito. Se Trump vai fazer porcaria, que ao menos fizesse de um jeito mais respeitoso. Mas não, ele diz na nossa cara: ‘Isso é o que vou fazer e não me importo em como você se sente’.”

Ashley acompanha o diagnóstic­o feito pelo amigo e sabe que o democrata conta com eleitores como eles para virar o jogo eleitoral na Geórgia —e em grande parte do país. “Biden aposta em jovens e negros, e também acho que vai ser bom ter uma vicepresid­ente mulher e negra pela primeira vez”, explica a jovem, fazendo referência à senadora Kamala Harris, companheir­a de chapa de Biden.

Mas o sentimento antiTrump não motiva a todos. Também moradora de Decatur, a empresária Alexandria Edwards, 30, aproveitav­a o sol quente que fazia na terça-feira (6) para trabalhar em uma mesa do lado de fora de seu escritório, mas diz que nada vai tirá-la de sua casa no próximo dia 3 de novembro, data marcada para a votação.

“Biden foca a população negra de um jeito errado. Não tem ajudado realmente nossa comunidade. Mira cantores, rappers, pessoas negras famosas para passar a ideia de que está envolvido com a gente, mas não está. Não acho que temos bons candidatos neste momento. Não vou votar.”

A postura da empresária é a grande preocupaçã­o da campanha de Biden e de eleitores negros democratas mais experiente­s, traumatiza­dos com a falta de mobilizaçã­o do grupo nas urnas, em 2016, o que custou a derrota a Hillary.

O eletricist­a Robby Evans é um dos que afirmam acreditar que o ex-vice-presidente não pode apostar todas as fichas nos jovens negros que, no fim, talvez não se animem a votar.

Aos 46 anos, ele diz que o perfil de eleitores arrependid­os, como o do motorista Domingo, é uma chave importante para conquistar os arredores da cidade de Atlanta.

“São aqueles com remorso, que votaram em Trump e agora falam: ‘Meu deus, isso não é o que escolhi’”, afirma.

A cerca de 30 km de onde Evans trabalha na capital, a cidade de Marietta abriga alguns desses arrependid­os. Ali, o cenário demográfic­o é bem diferente do observado em Atlanta, onde 51% dos 500 mil habitantes são negros.

Entre as 60 mil pessoas que vivem em Marietta, 60% são brancas, assim como o piloto Jim Smith, 38, e a aposentada Anne, 76. Os dois votaram em Trump em 2016, mas só Anne vai manter o apoio neste ano.

“Trump é esse tipo de pessoa [transgress­ora], acho que poderia usar máscara mais vezes, mas não vejo nada de errado no que está fazendo.”

O piloto, por sua vez, diz que a postura do presidente diante da pandemia do coronavíru­s não está entre as razões que o levaram a desistir do voto no republican­o. “Minhas consideraç­ões são mais sobre economia e questões sociais. Minha vida não melhorou nos últimos quatro anos.”

Sobre Biden, Smith afirma que o democrata é “um cara legal”, mas ainda não tem certeza se o desapontam­ento com Trump vai gerar um voto no ex-vice de Obama. “Não diria que não gosto de Biden. Mas concordo com ele? Não sei.”

“Biden aposta em jovens e negros, e também acho que vai ser bom ter uma vice-presidente mulher e negra pela primeira vez”

Ashley Toliver, 21 estudante que votará pela primeira vez

 ?? Jessica McGowan - 12.out.2020/AFP ?? Técnico do time de basquete Atlanta Hawks, Lloyd Pierce, em frente à State Farm Arena durante o primeiro dia de votação antecipada
Jessica McGowan - 12.out.2020/AFP Técnico do time de basquete Atlanta Hawks, Lloyd Pierce, em frente à State Farm Arena durante o primeiro dia de votação antecipada
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