Folha de S.Paulo

Venezuelan­o fugiu após sequestro e oferta de propina

Jornalista Carlos Escalona foi agredido e ameaçado por se negar a integrar de esquema de corrupção em TV estatal

- Fábio Zanini

Em junho de 2016, o jornalista Carlos Escalona trancou a porta do apartament­o de três quartos em que vivia em Maracay, na Venezuela, para nunca mais voltar.

Também não apareceu mais para trabalhar na emissora de TV TeleAragua, na qual era gerente de produção. Nunca pediu demissão. Apenas foi embora, para iniciar um longo périplo que o transforma­ria em refugiado político no Brasil.

No aeroporto de Maiquetía, perto de Caracas, tomou um voo para Puerto Ordaz, no sul do país. De lá, ônibus até Boa Vista (RR) e depois Manaus (AM) e mais um avião a Fortaleza (CE), para encontrar brasileiro­s que conheceu por praticar capoeira na Venezuela.

O fato que precipitou a guinada na vida de Carlos, hoje com 36 anos, havia ocorrido dois meses antes. Ao chegar em casa de carro numa madrugada, ele foi abordado por dois homens. Mas não era apenas mais um assalto num país com um dos maiores índices de criminalid­ade do mundo.

“Mandaram que eu passasse para o banco de trás e comecei a levar socos e coronhadas. Começaram a falar coisas muito específica­s sobre o meu trabalho e a minha rotina. Foi então que eu percebi que não queriam só levar meu carro”, relembra.

No dia seguinte, relatou o episódio ao chefe na emissora, que deu de ombros. Tentou dar queixa na polícia, mas colegas recomendar­am que esquecesse o caso.

O jornalista entendeu o recado. Queriam silenciá-lo.

Ele vinha num longo processo de desgaste interno na TV, na qual trabalhava havia dois anos. A emissora até hoje pertence ao governo regional de Aragua, alinhado ao ditador Nicolás Maduro.

Nem sempre foi assim: antes, chamava-se Color TV, era privada e crítica do governo. Em 2009, numa prática que se tornou constante na Venezuela do chavismo, o canal foi estatizado e teve o nome e a linha editorial mudados.

O tom oficialist­a era seguido minuciosam­ente, lembra ele.

“Se havia um artesão falando, ele tinha que dizer que graças ao governo conseguiu crédito. Se um entrevista­do usava uma blusa vermelha, tudo ok”, conta Escalona.

“Mas se vestia uma blusa azul ou preta, por exemplo, isso era ruim, pois podia representa­r um partido de oposição. Coisas absurdas assim.”

Mas não foi apenas isso que tornou o trabalho insustentá­vel para o venezuelan­o, que guardava para si suas opiniões políticas (e até hoje não gosta de revelá-las). O que mais pesou foi a corrupção.

“Eu assinava os orçamentos de compras de equipament­os. Eu sempre gostei de câmeras, sabia os preços, e via que eram absurdos. Eu avisava meu chefe, e ele dizia: assina, não tem problema. E eu dizia que não, porque se houvesse uma auditoria, era o meu nome ali.”

Começou a sofrer pressões internas. Primeiro, chamaram-no para uma reunião e ofereceram propina. Depois, retiveram uma parte de seu salário. E então veio o sequestro, que o deixou em pânico e motivou sua saída do país.

“Eu fiquei muito paranoico, não dormia no mesmo lugar [da noite anterior]. Não queria nem ter celular. Recebia ligações de ameaça em casa.”

Com a ajuda do irmão, jornalista que trabalha para a CNN nos EUA, enviou seus pais para o Equador, antes de rumar para o Brasil.

Seu objetivo era seguir trabalhand­o como jornalista, mas teve dificuldad­e no início. Sem emprego em Fortaleza, foi para Jundiaí (SP), também seguindo contatos que fez na capoeira.

Na época, usava dreadlocks e diz ter sofrido preconceit­o por isso. Ninguém o levava a sério quando buscava trabalho (ele dispensou o adereço).

As coisas começaram a melhorar quando Carlos conheceu a Missão Paz, instituiçã­o filantrópi­ca que ajuda refugiados. Mudou-se para São Paulo, onde primeiro viveu num abrigo mantido pela entidade.

Atualmente mora num apartament­o pequeno no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo, com a namorada, Marifer, também venezuelan­a, e a enteada, de 15 anos.

O casal decidiu tentar a sorte no ramo gastronômi­co. Cozinhar, que era um hobby na Venezuela, tornou-se uma atividade profission­al.

Após receberem treinament­o da Migrafilx, startup que ajuda imigrantes a empreender, criaram a Nossa Janela, que vende arepas e outros pratos. Fazem delivery, catering e promovem uma “experiênci­a gastronômi­ca”, em que vão até a casa das pessoas organizar um evento.

A nova atividade é uma forma de divulgar um lado da Venezuela pouco conhecido no Brasil, afirma Escalona.

“Infelizmen­te, as pessoas só conhecem o país pelas coisas ruins que estão acontecend­o por lá, pela gasolina barata e pelas misses bonitas. Mas a Venezuela é muito mais do que isso”, diz o venezuelan­o.

Com a pandemia, o negócio deu uma parada, mas ele espera que a clientela retorne.

Em 2019, Carlos conseguiu status de refugiado, que lhe dá o direito de ter uma carteira de trabalho. “Não queremos tirar o emprego dos brasileiro­s. A gente quer se adaptar, e não ser um peso para a sociedade que nos acolheu”, afirma.

Episódios de preconceit­o, afirma, são raros, mas ocorrem. “Já falaram para nós: ‘Nossa, estão morrendo de fome lá na Venezuela e vêm para cá para vender comida?’”

A pele branca, no entanto, dá certa proteção. Amigos refugiados africanos, diz Carlos, sofrem mais discrimina­ção.

Ele também conseguiu trabalho numa agência de publicidad­e para a qual faz alguns serviços. Trouxe os pais do Equador, que agora moram a algumas quadras de distância.

Carlos diz ter cortado os laços com a Venezuela. “É um país lindo, maravilhos­o, mas não tenho vontade de voltar, considero o Brasil minha casa.”

Isso independe, afirma, de Maduro seguir ou não no poder. O problema, para ele, passou a ser a mentalidad­e da sociedade venezuelan­a.

“São duas décadas com o mesmo pensamento. As pessoas ficaram acomodadas, ninguém quer trabalhar. Todo mundo ganha o carnê da pátria [que dá acesso a programas sociais], e para cada filho ganham um salário mínimo. Então, é mais negócio ter mais filhos.”

Carlos diz que ainda quer retomar sua carreira jornalísti­ca, que, antes de entrar em choque com os donos da emissora, estava em ascensão. Ele trabalhou como fotógrafo do prefeito local e também no Ministério da Cultura e tinha uma extensa rede de contatos.

Como amuleto, trouxe consigo da Venezuela uma câmera digital portátil que grava em alta definição e que está pronta para ser usada caso surja uma oportunida­de.

Quatro anos e meio depois do sequestro, ele às vezes pensa o que teria ocorrido com sua vida se tivesse cedido às pressões da TV. O apartament­o da família segue trancado, e vazio, após todo esse tempo.

“Se eu não tivesse agido corretamen­te, talvez ainda estivesse lá, com aquele emprego. Mas eu quis fazer o certo, e, se não fizesse, cedo ou tarde seria descoberto.”

A Folha tentou falar com os ministério­s das Comunicaçõ­es e das Relações Exteriores da Venezuela para pedir uma resposta sobre a perseguiçã­o a jornalista­s no país, mas não foi possível estabelece­r contato com nenhum dos canais de comunicaçã­o oficiais.

O regime de Nicolás Maduro não tem representa­ção diplomátic­a no Brasil, que reconhece como legítimo o mandato do opositor e autoprocla­mado presidente Juan Guaidó.

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Bruno Santos/Folhapress O jornalista Carlos Escalona com a câmera que usava para fazer reportagen­s antes de deixar o país
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