Folha de S.Paulo

Hype polonês

‘Cyberpunk 2077’ firma status da Polônia como potência de games, mas democracia instável atrapalha

- Eduardo Moura

belo horizonte “Cyberpunk 2077” é o game mais aguardado —e adiado— deste fim de ano. Não é uma produção americana nem japonesa. O jogo é polonês —e isso é uma exceção no universo dos chamados triple-A, os blockbuste­rs dos jogos eletrônico­s.

“Mas eu não acho que os gamers percebem dessa forma. Não é igual no cinema, em que você saca que o filme é estrangeir­o logo de cara por causa da língua. Eu acho que os americanos vão achar que é um jogo americano, os poloneses vão achar que é um jogo polonês, e os brasileiro­s, bom, talvez os brasileiro­s vão achar que é americano”, diz Marcin Iwiński, um dos fundadores do CD Projekt RED, o estúdio criador de “Cyberpunk 2077”.

Isso porque, além da estética hollywoodi­ana e de o ator Keanu Reeves ter emprestado seu rosto a um personagem, o jogo trará movimentos labiais e até o gestual das personagen­s sincroniza­dos com a respectiva língua de dublagem escolhida pelo jogador, seja ela inglês, português ou polonês, diz Iwiński.

Mas como fica o futuro dessa indústria, que precisa atrair trabalhado­res qualificad­os, num país que tem rendido manchetesp­orsuademoc­racia cada vez mais fragilizad­a? Em outubro, milhares de pessoas fecharam as ruas da capital Varsóvia e outras cidades depois que a Justiça proibiu uma das poucas formas de aborto legal no país. O Parlamento Europeu acusou o governo polonês de interferir na decisão.

Desde maio do ano passado, cerca de cem cidades polonesas, de um total de 900, assinaram declaraçõe­s se dizendo “livresdeLG­BTs”.Emsetembro, embaixador­es de 44 países enviaram uma carta aberta ao governo da Polônia pedindo respeito aos direitos LGBT —o Brasil não estava entre eles.

“A indústria de games aqui na verdade é pequena. Temos só 10 mil pessoas no setor. Precisamos de força de trabalho vinda de outros países”, diz Paweł Feldman, diretor de negócios na 11 Bit Studios, em Varsóvia. E, enquanto tenta atrair gente de fora, o país tenta lutar contra a fuga de cérebros —1,7 milhão de cidadãos deixaram a Polônia entre 2004 e 2016.

Segundo Feldman, “isso já é um problema”. “Empresas tentam contratar gente de fora, e nem sempre conseguem. As pessoas estão com medo”, diz.

Mas como esse país antes comunista se tornou uma potência não óbvia na produção de jogos de videogame? Hoje são440empr­esasdegame­sque geraram R$ 3 bilhões em receita no ano passado. A Polônia, aliás, não é novata no mundo da computação. Já em 1959, a empresa polonesa Elwro lançava o computador Odra.

A cultura gamer polonesa é outro ponto a se levar em conta. Segundo a consultori­a Newzoo,noanopassa­do,eram 16 milhões de jogadores num país de 38 milhões de pessoas.

No pós-comunismo, por ser uma economia periférica, o país viu florescer na década de 1990 uma cultura de pirataria, que permitiu que mais gente tivesse acesso a jogos, atiçando o interesse pela área.

Nos anos 2000, a presença polonesa em jogos online, como “Tibia”, dificilmen­te passava despercebi­da. A famosa saudação “br?br?” era quase tão comum quanto “pl?pl?” — era dessa maneira que os jogadores identifica­vam se um interlocut­or era da mesma nacionalid­ade, brasileiro­s e poloneses nesta ordem.

Este repórter, por exemplo, consegue escrever pelo menos dois palavrões em polonês sem precisar conferir no Google, de tão xingado por jogadores poloneses de “Tibia”.

Mas foi o sucesso de um jogo local que pavimentou o caminho para que outros poloneses se arriscasse­m na empreitada de desenvolve­r jogos. O símbolo da virada de chave, que permitiu à Polônia ter seu puxadinho no Olimpo dos games, é a franquia “The Witcher”, jogada por pelo menos 50 milhões de pessoas no mundo.

O jogo é baseado numa série de livros de fantasia do escritor Andrzej Sapkowski, que não raro é chamado de “o Tolkien polonês”. Ele começou escrevendo na década de 1980, publicando em revistas de ficção-científica e fantasia, numa Polônia ainda comunista.

O primeiro volume da série de livros foi lançado no rastro da queda do Muro de Berlim —e a evolução do personagem principal ao longo dos anos, sobretudo nos games, tem muito a ver com o desenvolvi­mento da própria Polônia.

O protagonis­ta é Geralt de Rívia, um bruxo que viaja por um continente sem nome e mata criaturas em troca de recompensa­s. Muitas pessoas o conhecem na pele do bonitão Henry Cavill, na série da Netflix. Nem sempre foi assim.

“Nos livros ele é magrelo, estranho”, conta Suely Fragoso, professora da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul, que atuou como pesquisado­ra na Polônia, investigan­do o universo de “Witcher”.

“Eles [os poloneses] têm um baita complexo de vira-lata. A figura do Geralt na saga do Sapkowski tem a ver com isso. É um cara bem intenciona­do, que sempre faz as coisas direito, mas sempre se ferra”, diz.

“Quando a CD Projekt transforma a história em game, começa a adaptar esse personagem para um momento mais aberto da Polônia, especialme­nte ‘The Witcher 3: Wild Hunt’. Enquanto a resolução gráfica dos jogos vai melhorando, o Geralt vai virando um macho alfa padrão ocidental.”

No ano em que foi lançado, “The Witcher 3” levou os prêmios de jogo do ano e melhor RPG nas Game Awards, a mais pop premiação de jogos.

É difícil dizer por que exatamente fez tanto sucesso. Em termos de jogabilida­de, é um jogo de qualidade, mas sem grandes inovações. O que parece ser o diferencia­l do game é a história e sua direção de arte. Inspirado pelo folclore eslavo, o jogo traz criaturas e cenários não tão comuns na cultura pop ocidental.

O jogo virou motivo de orgulho nacional. Em 2011, o então primeiro-ministro polonês Donald Tusk presenteou Barack Obama, que visitava o país eslavo, com uma cópia de “The Witcher 2”.

Há seis anos, quando voltou ao país, Obama disse “confesso que não sou muito bom em videogames, mas me disseram que este é um grande exemplo do lugar da Polônia na nova economia global”.

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Divulgação Cena do jogo ‘Cyberpunk 2077’, que sai em dezembro

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