É TUDO VERDADE RETRATOS DE FAMÍLIA
Relações entre parentes são mote para que documentários transcendam para além das quatro paredes e discutam política, história e a natureza do que se filma
Em “No Intenso Agora”, ao narrar as filmagens feitas por sua mãe na China de 1966, o diretor João Moreira Salles cita, com alguma ironia, as descrições cravadas por ela no diário: a “pobreza decente, orgulhosa e implacável” notada entre os chineses em ebulição durante a Revolução Cultural.
O laço familiar, que nesse longa serve de gatilho para uma reflexão maior sobre a natureza do que se filma, também é o estopim de outras cinco produções do festival É Tudo Verdade, o maior do gênero no país, e se consagra como uma forte tendência do documentário contemporâneo.
Sejam os retratos do pai sumido, a diáspora de antepassados ou até as opiniões de parentes, é a família a fagulha de um relato com dimensões históricas e políticas.
Moreira Salles arrisca palpites sobre a emergência desse tipo de produto documental nos dias de hoje. Crê que as mídias sociais possam ter algum papel na “exaltação da primeira pessoa” no cinema.
“Nas redes, o mundo é per- cebido a partir da experiência pessoal e, de modo geral, todos se sentem protagonistas, ninguém é apenas observador”, afirma o cineasta. ‘MENOS INVASIVOS’ Em “No Intenso Agora”, a família é mera centelha. Os registros feitas pela mãe do documentarista compõem um mosaico que perpassa também Primavera de Praga, Maio de 68 e comoção contra a ditadura militar brasileira.
“Não sou historiador e não vivi o período”, diz Moreira Salles. “O que me autoriza a fazer um filme sobre 1968? A única resposta que me parece satisfatória é que fazer o registro desde uma perspectiva biográfica, logo parcial, traz algo de singular à história.”
No documentário, a efervescência política do ano de 1968 desperta inevitáveis comparações com os protestos ocorridos em junho de 2013 no Brasil —ambos momentos de um auge que se sabe efêmero, um dos temas do filme. São instantes de “ressaca pós-utópica”, na definição de Amir Labaki, diretor do festival É Tudo Verdade.
Labaki credita à revolução digital a profusão de filmes com o mesmo vetor familiar na programação da mostra.
“Ela tornou possível que mais pessoas contassem suas histórias privadas, até porque o equipamento ficou menos invasivo, e deu mais facilidade para se trabalhar com o material de arquivo”, diz.
Ele nota que o caminho também pode ser inverso, do público para o privado, caso de “Perón, Meu Pai e Eu”. Nele, o argentino Blas Martinez parte das gravações de uma entrevista que seu pai, o jornalista Tomás Eloy Martinez fez com o ex-presidente Perón, para se reconectar à memória do progenitor distanciado.
“No filme, Perón é uma figura mítica, mas que está lá quase intermediando a relação entre pai e filho”, afirma.
Se em “Perón, Meu Pai e Eu” o fio familiar culmina numa obra lunar, o resultado é solar em “Eu, Meu Pai e os Cariocas”, de Lúcia Veríssimo. A atriz remonta a carreira do pai, o maestro Severino Filho, e um dos fundadores d’Os Cariocas, grupo que atravessou a era do rádio e da bossa nova.
Para Labaki, o ponto de inflexão do documentário familiar,
‘NO INTENSO AGORA’
A partir de filmagens feitas por sua mãe, João Moreira Salles abre o leque para discutir utopia e a natureza da imagem. qui. (27), às 21h, no Cinearte
Quando: ‘EU, MEU PA IE OS CARIOCAS’
A atriz Lúcia Veríssimo remonta carreira do pai, Severino Filho, músico do grupo Os Cariocas,
‘RELAÇÕES PRÓXIMAS’
Diretor forma mosaico sobre a situação ucraniana por meio de entrevistas com seus parentes.
‘PERÓN, MEU PA IEE U’
Filho se reconecta com o pai a partir de entrevista que este fez com Perón.
qui. (27), às 19h, no Cinearte
‘NO EXÍLIO’
Diretor rememora trajetória da família, que se refugiou no México da Guerra Civil na Espanha. este que serve de fio para o retrato de uma época, passa pela obra do nova-iorquino Alan Berliner. Em“Intimate Stranger” (1991), ele cavouca a história do avô, judeu egípcio cuja admiração pelo Japão gerava desconfiança nos EUA do pós-guerra.
Outro expoente, na opinião de Labaki: o argentino Andres di Tella. “Fotografias” (2007) toma por base imagens feitas pela mãe, nascida na Índia, para abordar identidade. PAISAGEM DA JANELA Fora do âmbito do festival, as atrizes Camila Pitanga e Leandra Leal também remexem nos seus álbuns de família.
A primeira se juntou ao diretor Beto Brant e colocou o pai, o ator Antônio Pitanga, no foco. Em cartaz, o documentário “Pitanga” resvala na reconstrução de um momento histórico das artes do país, o do surgimento do cinema novo, que teve no ator um de seus mais conhecidos rostos.
Leandra voltou às coxias do Teatro Rival, no Rio, para contar a história das transformistas que passaram pelo palco do local, gerido pela família.
“Divinas Divas”, que estreia em junho, reúne depoimentos de Rogéria, Eloína dos Leopardos e outras artistas que tiveram no Rival um abrigo em tempos mais homofóbicos.
“Sou muito realizada como atriz. Só faria sentido dirigir um filme que fosse pessoal”, diz Leandra que, criança já assistia aos shows ali e convivia com as transformistas. “Eu tinha uma sensação de que deveria fazer esse filme e que só eu poderia fazer esse filme.”
A fala da atriz encontra eco na de João Moreira Salles. “É como enxergar a paisagem desde a janela”, ele define. “Só eu tenho essa vista”.