Folha de S.Paulo

Disputa entre órgãos estatais gera inseguranç­a jurídica

- SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL

O governo federal se queixa de que o TCU (Tribunal de Contas da União) está tratando de forma “diferencia­da” os casos de empreiteir­as da Lava Jato que firmaram acordos de leniência —espécies de delações premiadas de pessoas jurídicas.

Numa manifestaç­ão entregue à corte na terça-feira (31), a AGU (Advocacia-Geral da União) argumenta que o tribunal decidiu em setembro que cabe bloquear os bens da UTC Engenharia, embora a empresa tenha firmado um acordo com o governo. Porém, o mesmo acórdão mantém liberados os patrimônio­s da Odebrecht e da Andrade Gutierrez, cujos acordos foram fechados com o MPF (Ministério Público Federal).

Os acordos de leniência são instrument­os pelos quais uma empresa suspeita de corrupção confessa ilícitos ao Estado, fornece provas para alavancar as investigaç­ões e ressarce o erário pelas perdas causadas, em troca de aliviar punições. Tanto o governo quanto o MPF fazem negociaçõe­s desse tipo, mas cada qual pactua os benefícios que são de sua competênci­a.

Na petição entregue ao tribunal, a AGU pleiteia que seja revista decisão que determina medidas para reparar prejuízos de R$ 653 milhões, supostamen­te causados pelas empreiteir­as em obras contratada­s pela Petrobras no Comperj (Complexo Petroquími­co do Rio de Janeiro).

O TCU entendeu que o acordo de leniência firmado pela AGU e pelo Ministério da Transparên­cia com a UTC é um “ato administra­tivo típico”, que está sujeito à sua fiscalizaç­ão. Por isso, só teria validade após a corte dar sua palavra final sobre o que foi acertado entre as partes, o que não ocorreu ainda. O tribunal pondera que não exerce controle sobre a “atividade finalístic­a” do MPF, não lhe cabendo analisar os termos que o órgão pactuou. Essa tarefa seria da Justiça

Na decisão, os ministros da corte livraram Odebrecht e Andrade do bloqueio de bens e requisitar­am à AGU que formule à Justiça pedido para salvaguard­ar “medidas de constrição patrimonia­l” contra a UTC Engenharia e a sua controlado­ra, a UTC Participaç­ões. As empresas pediram recuperaçã­o judicial.

À Folha a AGU argumentou que os atos da administra­ção federal, a exemplo dos acordos de leniência, têm “eficácia imediata”, não cabendo ao tribunal suspendêlo­s até eventual análise. O órgão explicou que esse tipo de atuação do TCU não está previsto na Lei Anticorrup­ção. O TCU ainda não deliberou sobre o pedido.

A divergênci­a é mais um capítulo da disputa de competênci­as de leniências. O tribunal vem fiscalizan­do o governo e apontando irregulari­dades nas negociaçõe­s. A AGU, por sua vez, questiona medidas do MPF na Justiça e até solicitou o bloqueio de bens das empresas que têm acordos com procurador­es.

FOLHA

A experiênci­a mais recente acerca do Estado brasileiro mostra-nos uma singularid­ade. É que convivem no âmbito estatal vários centros de gravidade, cada qual se orientando por interesses próprios, o que contribui para o comprometi­mento da centralida­de e unidade do poder.

Esse paradoxo encontra diferentes formas de expressão, que tendem a trazer sérias consequênc­ias para a sociedade. Uma delas está materializ­ada hoje na disputa corporativ­ista de vários órgãos estatais pelo protagonis­mo na celebração dos acordos de leniência, cada qual se orientando por premissas muitas vezes conflituos­as entre si.

Com efeito, Ministério Público, Ministério da Transparên­cia, Controlado­ria-Geral da União, Advocacia-Geral da União e Tribunal de Contas da União estão, pelo menos no discurso formal, buscando enfrentar o tema da moralidade administra­tiva.

Na medida, contudo, em que lhes falta uma diretriz comum, expressão de uma centralida­de de poder, agem com enorme carência de racionalid­ade, retirando do acordo de leniência toda a sua potenciali­dade transforma­dora do status quo, que vem expressa nos próprios objetivos legais do instituto, isto é, permitir, a um só tempo, que as empresas que tenham cometido, por seus empregados e executivos, atos ilícitos de corrupção possam ressarcir o erário, fornecer informaçõe­s e documentos que aparelhem novas investigaç­ões e implantar programas de integridad­e que orientem para o futuro de suas ações.

Na prática, o que se tem observado é um enorme embaraço e desestímul­o à celebração dos acordos e mesmo o oferecimen­to de obstáculos à própria efetividad­e dos acordos já celebrados.

As consequênc­ias são visíveis. As investigaç­ões restam comprometi­das, novas práticas, que poderiam estar orientadas por programas de integridad­e monitorado­s por órgãos responsáve­is, não se implantam, e, por fim, o ressarcime­nto dos cofres públicos não se concretiza.

Dessa forma, a inseguranç­a jurídica produzida francament­e conspira contra a moralizaçã­o que os acordos de leniência deveriam viabilizar se, antes de mais nada, fossem compreendi­dos como instrument­os de política de Estado. SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL,

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