Disputa entre órgãos estatais gera insegurança jurídica
O governo federal se queixa de que o TCU (Tribunal de Contas da União) está tratando de forma “diferenciada” os casos de empreiteiras da Lava Jato que firmaram acordos de leniência —espécies de delações premiadas de pessoas jurídicas.
Numa manifestação entregue à corte na terça-feira (31), a AGU (Advocacia-Geral da União) argumenta que o tribunal decidiu em setembro que cabe bloquear os bens da UTC Engenharia, embora a empresa tenha firmado um acordo com o governo. Porém, o mesmo acórdão mantém liberados os patrimônios da Odebrecht e da Andrade Gutierrez, cujos acordos foram fechados com o MPF (Ministério Público Federal).
Os acordos de leniência são instrumentos pelos quais uma empresa suspeita de corrupção confessa ilícitos ao Estado, fornece provas para alavancar as investigações e ressarce o erário pelas perdas causadas, em troca de aliviar punições. Tanto o governo quanto o MPF fazem negociações desse tipo, mas cada qual pactua os benefícios que são de sua competência.
Na petição entregue ao tribunal, a AGU pleiteia que seja revista decisão que determina medidas para reparar prejuízos de R$ 653 milhões, supostamente causados pelas empreiteiras em obras contratadas pela Petrobras no Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro).
O TCU entendeu que o acordo de leniência firmado pela AGU e pelo Ministério da Transparência com a UTC é um “ato administrativo típico”, que está sujeito à sua fiscalização. Por isso, só teria validade após a corte dar sua palavra final sobre o que foi acertado entre as partes, o que não ocorreu ainda. O tribunal pondera que não exerce controle sobre a “atividade finalística” do MPF, não lhe cabendo analisar os termos que o órgão pactuou. Essa tarefa seria da Justiça
Na decisão, os ministros da corte livraram Odebrecht e Andrade do bloqueio de bens e requisitaram à AGU que formule à Justiça pedido para salvaguardar “medidas de constrição patrimonial” contra a UTC Engenharia e a sua controladora, a UTC Participações. As empresas pediram recuperação judicial.
À Folha a AGU argumentou que os atos da administração federal, a exemplo dos acordos de leniência, têm “eficácia imediata”, não cabendo ao tribunal suspendêlos até eventual análise. O órgão explicou que esse tipo de atuação do TCU não está previsto na Lei Anticorrupção. O TCU ainda não deliberou sobre o pedido.
A divergência é mais um capítulo da disputa de competências de leniências. O tribunal vem fiscalizando o governo e apontando irregularidades nas negociações. A AGU, por sua vez, questiona medidas do MPF na Justiça e até solicitou o bloqueio de bens das empresas que têm acordos com procuradores.
FOLHA
A experiência mais recente acerca do Estado brasileiro mostra-nos uma singularidade. É que convivem no âmbito estatal vários centros de gravidade, cada qual se orientando por interesses próprios, o que contribui para o comprometimento da centralidade e unidade do poder.
Esse paradoxo encontra diferentes formas de expressão, que tendem a trazer sérias consequências para a sociedade. Uma delas está materializada hoje na disputa corporativista de vários órgãos estatais pelo protagonismo na celebração dos acordos de leniência, cada qual se orientando por premissas muitas vezes conflituosas entre si.
Com efeito, Ministério Público, Ministério da Transparência, Controladoria-Geral da União, Advocacia-Geral da União e Tribunal de Contas da União estão, pelo menos no discurso formal, buscando enfrentar o tema da moralidade administrativa.
Na medida, contudo, em que lhes falta uma diretriz comum, expressão de uma centralidade de poder, agem com enorme carência de racionalidade, retirando do acordo de leniência toda a sua potencialidade transformadora do status quo, que vem expressa nos próprios objetivos legais do instituto, isto é, permitir, a um só tempo, que as empresas que tenham cometido, por seus empregados e executivos, atos ilícitos de corrupção possam ressarcir o erário, fornecer informações e documentos que aparelhem novas investigações e implantar programas de integridade que orientem para o futuro de suas ações.
Na prática, o que se tem observado é um enorme embaraço e desestímulo à celebração dos acordos e mesmo o oferecimento de obstáculos à própria efetividade dos acordos já celebrados.
As consequências são visíveis. As investigações restam comprometidas, novas práticas, que poderiam estar orientadas por programas de integridade monitorados por órgãos responsáveis, não se implantam, e, por fim, o ressarcimento dos cofres públicos não se concretiza.
Dessa forma, a insegurança jurídica produzida francamente conspira contra a moralização que os acordos de leniência deveriam viabilizar se, antes de mais nada, fossem compreendidos como instrumentos de política de Estado. SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL,