‘Vazante’ eleva o patamar do debate sobre o sistema de escravidão no país
Seu filme é construído com uma série de contrastes: a colorida imagem turística feita pela mãe/o febril preto-ebranco dos noticiários; as palavras idílicas de Elisa/o fervoroso discurso político de Maio de 68; as inquietações pessoais de uma mulher/a exultação coletiva dos jovens na França.
São termos, em geral, inconciliáveis, mas é por meio deles, do choque de suas divergências, que Moreira Salles busca entender como, no bojo da história, relacionamse a tragédia de um com a de muitos, a felicidade de um com a de todos.
FOLHA
Assisti “Vazante” tentando entender por que integrantes do movimento negro reclamaram do filme durante o Festival de Brasília. Não consegui encontrar a razão. O filme expõe toda a crueldade da escravidão brasileira e faz isso de forma madura, sem ilusões ou sentimentalismo.
A diretora Daniela Thomas disse à Folha que tentou evitar o costume dos filmes americanos de retratar senhores escravistas como psicopatas. Essa decisão elevou o filme a um novo patamar das discussões sobre a escravidão brasileira.
Perto de “Vazante”, “Quilombo de Palmares” é uma obra da quarta série do primário. Os brancos do filme de 1984 são fúteis ou assassinos sádicos; os negros, heróis virtuosos e progressistas.
Em “Vazante”, apesar da maldade da escravidão permear a história, nenhum personagem é particularmente mau. Senhores, escravos, libertos —todos são miseráveis. O espectador sente pena de todos, exaustos da falta de conforto e da miséria que dominava o mundo. Mesmo o personagem mais rico da história, tão acostumado que está a andar descalço na mata, não consegue se acostumar a calçar sapatos.
Ninguém ali se sente capaz de mudar a própria vida, o que dirá mexer num costume na época milenar como a escravidão.
Essa visão da “banalidade do mal” é o aspecto mais interessante do filme. Assim como Hannah Arendt advertiu sobre o Holocausto, seria empobrecedor encarar a escravidão como um simples ato de psicopatia. “Vazante” mostra pessoas empurradas a viver num sistema que nenhuma delas havia criado e do qual ninguém sabe muito bem como escapar.
A principal crítica em Brasília foi a falta de protagonismo dos personagens negros. O protagonismo é a grande novidade da historiografia.
Diferente dos historiadores marxistas dos anos 1960 a 1980, que retratavam negros como coisas (obedeciam aos brancos ou morriam lutando), a maioria dos estudos desde 1990 mostrou negros como pessoas que planejavam, negociavam, moviam ações, enriqueciam. Ou seja, nem sempre agiam contra a instituição da escravidão.
Mas esse protagonismo está no filme. Há o africano que se recusa a trabalhar, uma estranheza entre escravos abrasileirados e recém-chegados, o negro liberto e próspero que sabe gerir a fazenda e “domar os escravos”.
A diretora até que pagou um bom pedágio ao movimento negro. Sorrisos e cumprimentos são tão raros que as cenas perdem naturalidade. Talvez por temer críticas de ativistas, evitou qualquer pitada da escravidão branda que Gilberto Freyre retratou.
Um pouco mais de afeto, negociação e laços de compadrio (frequentes nos documentos históricos) tornariam a reconstituição histórica ainda mais precisa, sem o risco de aderir à tese de “escravidão suave” de “Casa Grande & Senzala”.
Mas esse detalhe não tira o brilho de “Vazante”, um grande filme que merece aplausos do movimento negro e dos brasileiros em geral. DIREÇÃO Daniela Thomas ELENCO Sandra Corveloni, Jai Baptista, Adriano Carvalho PRODUÇÃO Brasil, 2016; 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (9)