Folha de S.Paulo

Nunca disse que não faria filmes.

- PATRÍCIA CAMPOS MELLO

ENVIADA ESPECIAL A TEERÃ

Jafar Panahi é um dos mais aclamados cineastas iranianos: venceu o Leão de Ouro em Veneza com o filme “O Círculo” (2000) e o Urso de Ouro em Berlim por “Táxi Teerã” (2015). Mas sua obra foi banida no Irã, e a fama internacio­nal não impediu que ele fosse preso pela teocracia que vigora em seu país desde a Revolução Islâmica (1979).

Em 2010, Panahi foi condenado a seis anos de prisão e proibido por 20 anos de fazer filmes, escrever roteiros, sair do país e dar entrevista­s, por fazer “propaganda contra a república islâmica”.

Ficou três meses no presídio de Evin. Foi solto após fazer greve de fome, e colocado em prisão domiciliar. Desde então, rodou três longas-metragens clandestin­amente — um deles, “Isto Não É um Filme”, inteiramen­te com celular, dentro de casa.

“Se o regime me prender de novo, vou me sentir melhor, porque saberei que não conseguire­i fazer filmes de jeito nenhum. Se eu estou livre e não posso fazer filmes, isso se torna outra prisão”, disse Panahi à Folha em seu apartament­o em Teerã, na primeira entrevista longa desde 2014, ao lado da mulher, Tahereh Saidi, e de Iggy, sua iguana de estimação. Folha - O senhor ganhou o Urso de Ouro em Berlim com um filme realizado sob condições muito difíceis [dentro de um táxi]. Que tipo de mensagem isso passa?

Jafar Panahi - Ao fazer meus filmes, mostro aos jovens que é possível trabalhar até nas condições mais sufocantes e restritas. Antes de eu ser condenado, muitos estudantes e jovens cineastas vinham se queixar, dizer que não dava mais para filmar no Irã.

Mas depois que eles viram que estou fazendo filmes com celular, ninguém mais pode reclamar. Em países onde a ideologia domina, o governo quer que você seja passivo, neutro, e que se distancie de seus ideais. Quando você acha um jeito de atingir seus objetivos, vê que está no caminho certo.

Logo depois de ser condenado a ficar 20 anos sem filmar, fiquei muito deprimido, fiz tratamento psiquiátri­co por um ano. Aí descobri que o melhor jeito de me livrar dessa depressão era trabalhar. Se não trabalho, não estou vivo. ferente do que acontece dentro das casas das pessoas. O regime faz as pessoas terem duas personalid­ades diferentes, uma que elas mostram lá fora e outra que representa o que elas realmente são. O governo está criando um outro problema social, fazendo as pessoas terem dupla personalid­ade, criando mentirosos. Fiquei surpresa ao ver que muitas pessoas desafiam o regime em vários aspectos do cotidiano —fabricando vinho em casa, mantendo relacionam­entos homoafetiv­os...

Isso é inevitável, até no próprio regime as pessoas têm duas caras. As altas autoridade­s cometem as maiores transgress­ões. Nunca tivemos um governo tão corrupto. Que questões sociais deveriam ser retratadas nos filmes iranianos hoje?

Quando usamos a palavra “dever”, nos afastamos do lado artístico do cinema. É exatamente o que o sistema está fazendo. Está dizendo: esse tipo de filme deveria ser feito. O sr. não vê abertura?

As coisas não podem melhorar, porque o regime se alimenta dessas questões. Não apenas nas artes, em todos os aspectos. Por exemplo, o túmulo de Ciro [iranianos celebram o dia de Ciro visitando o túmulo do primeiro rei da Pérsia, em Pasárgada, mas neste ano o governo iraniano bloqueou a entrada do local]. Ciro viveu 2.500 anos atrás e foi um progressis­ta em seu tempo, respeitava todas as nacionalid­ades e povos.

Mas o regime tem medo disso. Eles têm algumas desculpas, dizem que [o culto ao rei] vai contra o islã, mas quando Ciro vivia, não existia nem islã, nem cristianis­mo. O regime só reconhece a história persa depois do islã. Como o sr., que pareceu ter aceitado sua condenação, mas seguiu fazendo filmes...

Não. Também não posso fazer filmes. Tenho 20 anos de restrição para rodar filmes, escrever roteiro, dar entrevista e viajar para fora do país. Eles achavam que eu iria embora do Irã depois dessa condenação. Mas a única parte da condenação que eu respeitei foi a proibição de sair do país. O sr. vai ter problemas se eu publicar esta entrevista?

Nas vezes em que fui ao Brasil, todos foram tão calorosos que faço questão de te receber e de dar essa entrevista [ele veio três vezes para participar da Mostra de São Paulo]. O que eles vão fazer? Me mandar de volta para a prisão, aumentar minha pena para 120 anos? Não vou estar vivo.

Se o regime me prender de novo, de certa maneira vou me sentir melhor, porque saberei que não conseguire­i fazer filmes de jeito nenhum. Se estou livre e não posso fazer filmes, isso se torna outra prisão. PATRÍCIA CAMPOS MELLO O Círculo (2000) Leão de Ouro em Veneza, filme mergulha no cotidiano de repressão e abusos das mulheres no Irã O Espelho (1997) A história de uma garota que se perde da mãe e tenta voltar para casa mistura ficção e documentár­io para produzir uma crítica social e política delicada

Não acho que a situação vá melhorar com este ou outro presidente. Se continuarm­os com o mesmo regime, não vai melhorar Onde a ideologia domina, o governo quer que você seja passivo. Quando você acha um jeito de atingir seus objetivos, vê que está no caminho certo

O Balão Branco (1995) Vencedor do prêmio Câmera de Ouro em Cannes para filmes de estreia e do Prêmio do Júri na Mostra de São Paulo, usa o olhar de uma garotinha para tratar da sociedade iraniana contemporâ­nea

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