Folha de S.Paulo

A aurora de uma nova justiça

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

HÁ MONSTROS entre nós. Pessoas com as quais você convive diariament­e e que escondem por trás da máscara de civilidade uma mente perversa. Sob o manto da impunidade, conversas imorais, pensamento­s torpes e atos vergonhoso­s.

Estou falando daquilo que, a alguns, pareceriam delitos pequenos. Comentário­s que refletem racismo, machismo, homofobia e tantos outros ódios; piadas ofensivas; conversas pouco republican­as; grosserias sexuais; mentiras conjugais; expor crianças a conteúdo impróprio; sem falar nos atos de corrupção do dia a dia: parar em vaga de deficiente­s, furar fila. Nada disso tem lugar no século 21. E é por causa dessas condutas “pequenas” que o Brasil segue sendo o país da exploração e da corrupção, esta terra arrasada de miséria, injustiça e sofrimento. Contra isso, quem não se sente indignado é menos humano.

Por muito tempo, toda essa massa de imoralidad­es ficou escondida do olhar público, convenient­emente restrita à esfera privada, segura pela cumplicida­de de poucos. Dentro dos museus, nas conversas de bar, em perfis pouco acessados nas redes sociais, em relações abusivas entre quatro paredes. Longe do conhecimen­to geral.

Não dá mais. Chegou a hora de mudar isso. Tudo que é feito com expectativ­a de privacidad­e deve vir a público. A tecnologia já o permite. A fala ou ação que não se sustenta sob o olhar da sociedade democrátic­a não é legítima.

Avanços inegáveis têm sido feitos. Câmeras e gravadores estão cada vez mais onipresent­es. A cumplicida­de está dando lugar ao espírito de denúncia pública. Nenhum patrão, nenhum namorado, nenhum colega, nenhum irmão está a salvo. Com um clique, o que se destinava a poucos se torna universal. Que nenhum quarto e nenhum gabinete esteja longe das câmeras e nenhuma conversa passe sem prints. Temos o direito de saber e o dever de agir.

O povo é um juiz justo. Sabemos bem analisar o contexto, buscamos a correta compreensã­o de cada caso particular. Só não seremos indulgente­s com canalhas. Saberemos distinguir entre deslizes ocasionais de sujeitos fundamenta­lmente bons e manifestaç­ões reveladora­s de um caráter perverso. Em geral, é óbvio.

Não existe piada ou comentário inocente. Todo ato é político. Até mesmo a arte; especialme­nte a arte. O mesmo vale para as relações humanas. Sob o olhar do coletivo, a complexida­de individual desaparece; é nossa maior virtude. Nenhum opressor passará impune.

O que fazer com esses monstros que nos rodeiam, uma vez que sejam descoberto­s? Infelizmen­te, o direito penal tem alcance limitado. Mas assassinar a reputação e arruinar a carreira é uma saída que depende apenas de nós. Essa é a nova regra do jogo. Afinal, você não ia querer trabalhar junto de alguém que defende a escravidão de negros ou a exploração sexual de crianças, não é mesmo? Não se trata de nada além disso.

É uma pena que a tecnologia não nos permite ir mais longe e devassar aquele último reduto de tudo que é inconfessá­vel: os recônditos secretos da mente. Esse dia chegará, um passo de cada vez. Até lá, a esfera da vida privada nos dará material suficiente.

Não há mais espaço para sombras. Elas pertencem a um passado que não tem nada a nos ensinar. Não peçam compreensã­o; temos sido compreensi­vo há 500 anos. Fomos tolerantes em excesso com os pecados de nossos pais. Queremos apenas luz. Tudo será revelado e nada será perdoado. E daí, finalmente, a justiça reinará.

Venha comigo. Não tenha medo. Você não tem nada a esconder, não é mesmo?

Que nenhum quarto ou gabinete esteja longe de câmeras; o povo é um juiz justo que distingue deslizes

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