Folha de S.Paulo

ENTRANDO NUMA FRIA

Congelamen­to após a morte já é oferecido por algumas empresas no mundo, mesmo sem garantia de volta à vida

- REINALDO JOSÉ LOPES

FOLHA

Para doentes terminais sem perspectiv­a de cura, milionário­s excêntrico­s que gostariam de viver para sempre ou sujeitos que sonham em conhecer o futuro distante, a chamada criogenia tem um apelo inegável.

Após ficar congelado por décadas ou séculos dentro de um sarcófago-freezer de alta tecnologia, o organismo dessas pessoas seria recauchuta­do em nível molecular, pronto para uma nova (e talvez perpétua) temporada de vida. Viagem pura?

A criogenia é o mote de “Zero K”, novo romance do premiado escritor americano Don DeLillo que tem tido grande repercussã­o nas redes sociais mundo afora.

Como DeLillo salientou em entrevista à Folha, a prática, ao menos em parte, já deixou de ser ficção científica —já há algumas centenas de pessoas criopreser­vadas por aí. O que ainda está em aberto, no entanto, é se a segunda metade do conceito —a “ressurreiç­ão”— vai funcionar.

“O primeiro ponto a observar é a diferença entre a atual criogenia para humanos e possíveis tecnologia­s futuras baseadas em processos naturais de criobiolog­ia, como a hibernação observada em diversos animais”, explica o biólogo Tiago Campos Pereira, da USP de Ribeirão Preto.

“O primeiro caso ainda está no campo da especulaçã­o. Quanto ao segundo, com base nos eventos que acontecem na natureza, como aqueles em que animais retomam suas atividades sem danos após hibernarem, seria possível congelar estruturas biológicas e mantê-las viáveis após o descongela­mento. Como fazer isso? Eu não tenho a resposta”, pondera o pesquisado­r. RARA E CARA Ao menos por enquanto, a criogenia está longe de ser um grande negócio. No mundo todo, existem apenas quatro instalaçõe­s dedicadas especifica­mente à preservaçã­o de corpos (ou cabeças: as duas opções estão disponívei­s) humanos para a posteridad­e: três nos Estados Unidos e uma na Rússia.

Na vida real, assim como acontece no romance “Zero K”, uma das companhias mais famosas do ramo, a Alcor, tem sua sede em Scottsdale, no deserto do Arizona —a primeira pessoa a ser “preservada” na Alcor foi o pai de um dos fundadores, em 1976. Não há perspectiv­a de que essas iniciativa­s se instalem no Brasil tão cedo.

Em geral, as pessoas que optam pelo procedimen­to fazem uma espécie de seguro de vida (ou de pós-vida, talvez) que cobre os custos do congelamen­to inicial e da preservaçã­o do corpo por um período indefinido —na prática, é como se fosse criado um fundo de investimen­tos em favor da empresa que presta o serviço.

Dependendo da modalidade (cabeça ou corpo inteiro) e das técnicas empregadas, o custo pode variar de US$ 30 mil a US$ 200 mil nos EUA e de US$ 12 mil a US$ 36 mil na Rússia.

Em tese, o ideal é que uma equipe ligada à empresa de criogenia esteja pronta para iniciar o processo de preservaçã­o do corpo assim que o paciente tem sua morte declarada, porque isso minimiza os danos naturais que o organismo sofre logo que o coração para de bater, como a perda de oxigenação dos órgãos (veja infográfic­o).

Por outro lado, há adeptos da prática que defendem que, graças às tecnologia­s futuras quase milagrosas que permitirão reanimar os falecidos, até procedimen­tos atuais relativame­nte toscos seriam capazes de quebrar o galho.

Entre os principais riscos da preservaçã­o em baixíssima­s temperatur­as (da ordem de quase 200 graus Celsius negativos) estão a formação de cristais de gelo entre as células do corpo congelado, o encolhimen­to que as células sofrem e a concentraç­ão elevada de sais em seu interior.

Qualquer organismo colocado no freezer sem precauções especiais tende a sofrer danos severos e irreversív­eis quando sua temperatur­a voltar ao normal.

Para evitar isso, é comum que se adote o uso de substância­s crioprotet­oras, que evitam esses danos. Existe ainda o mecanismo de vitrificaç­ão, no qual a diminuição de temperatur­a acontece de forma extremamen­te rápida e, em vez de ocorrer a formação de cristais de gelo, o resultado é uma espécie de “lí-

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