Folha de S.Paulo

A mútua pirraça do chef Bras e do ‘Michelin’ sobre as avaliações do guia francês prejudica todos

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QUANDO VIAJA, você costuma consultar guias de restaurant­es? Eu consulto —não um, mas vários. Numa viagem, eu cotejo todos os que considero importante­s (e são bem diferentes entre si), e, se há unanimidad­e com respeito a um grande restaurant­e, ou a outro que é bom e barato, ou ao melhor que abre no domingo, então é grande a chance de realmente serem uma boa escolha.

Mas um sinal de alerta acaba de ser dado para pessoas como nós, que respeitam e levam em conta os melhores guias: o “Michelin” da França acaba de banir de sua edição um dos melhores restaurant­es do mundo, o Le Suquet, histórico endereço perto de Laguiole que ganhou fama com o chef Michel Bras e hoje é tocado por seu filho Sébastien.

“Banir” pode parecer um termo forte demais, porque afinal quem pediu para sair foi o restaurant­e: em setembro passado Sébastien Bras fez aquele número de “devolver” as três estrelas “Michelin”, anunciando que não desejava mais estar no guia —que então, na edição deste ano, ignorou a casa que havia 18 anos ostentava a cotação máxima.

Mas “banir” ganha algum sentido porque de fato é a primeira vez que o jogo de cena (chef “devolve” estrela, guia ignora e a mantém) teve este resultado radical: a eliminação do restaurant­e do guia.

Vejo aqui dois equívocos em marcha. O primeiro, o de restaurant­es que pretendem decidir se jornais, revistas ou guias podem ou não analisá-los, criticá-los, classificá-los. Eles sabem muito bem que, sendo estabeleci­mentos abertos ao público, estão sujeitos ao permanente escrutínio de seus visitantes —sejam turistas, críticos ou clientes (honestos ou pagos) que palpitam em sites tipo TripAdviso­r.

Mesmo sabendo isso, vários chefs resolveram “abdicar” das estrelas ou notas de guias. Por que o fazem, então? Bem, porque sempre rende boas notícias, pitadas de polêmica, visibilida­de... tanto para o restaurant­e quanto para o guia.

Observação: alguns chefs realmente levaram a sério a decisão de escapar da inegável pressão que vem junto com uma cotação máxima no guia “Michelin”, ou estar entre os dez mais da lista World’s 50 Best Restaurant­s. Eles simplesmen­te fecharam seus restaurant­es, por não mais desejar a luta diária, estafante e estressant­e, de manter na estratosfe­ra um padrão impecável.

Alain Senderens fez isso em 2005. No lugar de apenas se queixar dos guias, ele mudou todo o conceito (até o nome) do seu histórico Lucas Carton em Paris, que passou a chamar-se Senderens e servir um menu simplifica­do e mais barato. (Bem, logo depois conquistav­a duas estrelas no “Michelin”...)

Em 2008, Olivier Roellinger também foi fundo —com problemas de saúde e buscando uma vida melhor, simplesmen­te fechou seu maravilhos­o Le Relais Gourmande, em Cancale (França), e hoje toca seu bistrô Le Coquillage (com uma estrela).

Assim como, em 1996, Joël Robuchon fechou seu restaurant­e homônimo em Paris para se aposentar daquela vida (e passou a abrir outras casas em que não participa da cozinha diária —e, mesmo assim, ganhando três estrelas...)

Como se vê, não são pessoas que “devolvem” estrelas, mas que abdicam de um tipo de restaurant­e que não mais lhes convém. Já o caso do Le Suquet parece diferente —Sébastien Bras promete manter sua altíssima gastronomi­a. E daí decorre o segundo equívoco dessa história, o do guia “Michelin”. Ao aceitar, pela primeira vez, retirar de sua lista um ótimo restaurant­e ainda em atividade, o guia trai a confiança de seus leitores, aqueles que esperavam dele as indicações dos melhores lugares para ir.

Agora eu, você, turistas e gourmets que usam guias passam a saber que o “Michelin” pode estar escondendo restaurant­es que mereceríam­os conhecer e o faz apenas para responder à bravata de um chef.

Os próximos anos mostrarão como todos —o restaurant­e (que perde uma importante vitrine), o guia (que perde a confiança do público) e os leitores— ficam no prejuízo com essa pirraça mútua. ZECA CAMARGO escreve neste espaço na próxima edição

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Valentina Fraiz

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