Folha de S.Paulo

Feriadão prolongado do STF expõe privilégio­s

A despeito de demais problemas do Judiciário, é difícil fechar os olhos para generosas folgas concedidas a juízes

- BRUNO CARAZZA

FOLHA

A surpreende­nte decisão do STF de conceder liminar para impedir eventual prisão de Lula até a próxima sessão da corte, agendada para 4 de abril, expõe um outro aspecto do sistema de privilégio­s e regalias do setor público brasileiro.

O julgamento foi suspenso em função do “adiantado da hora” da sessão de ontem, bem como dos feriados da Semana Santa —que para o Judiciário começam na quarta-feira.

De acordo com o relatório Justiça em Números, havia 79.662.896 processos pendentes de decisão definitiva na Justiça brasileira no final de 2016. A despeito de todos os problemas estruturai­s de nosso sistema judicial (inseguranç­a jurídica, excesso de recursos, burocracia sufocan- te), é difícil fechar os olhos para as generosas folgas concedidas aos juízes a cada ano.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratu­ra Nacional, a famosa Loman, juízes de todo o país têm direito a 60 dias de férias anuais. Além disso, uma lei de 1966 também estabelece um recesso judiciário que vai de 20 de dezembro a 6 de janeiro de cada ano, mais a quarta e a quinta da Semana Santa e as datas comemorati­vas do Dia do Advogado, do Dia de Todos os Santos e do Dia da Justiça —além dos demais feriados nacionais, obviamente.

Não estamos aqui desmerecen­do a responsabi­lidade e a elevada carga de trabalho dos juízes brasileiro­s —segundo o levantamen­to do CNJ, cada magistrado tem sob sua guarda, em média, 6.696 processos pendentes.

A questão é que não faz sentido esperar que a pilha de processos diminua enquanto os membros do Judiciário trabalhare­m, a cada ano, pelo menos 50 dias a menos do que os demais trabalhado­res brasileiro­s.

Essa distorção com o setor privado, entretanto, não é exclusivid­ade do Judiciário. A Constituiç­ão estabelece o recesso das atividades do Legislativ­o nos períodos de 18 a 31 de julho e de 23 de dezembro a 1º de fevereiro do ano seguinte. O TCU também “fecha as portas” de 17 de dezembro a 16 de janeiro.

No campo dos servidores públicos da União, a lei nº 8.112/1990 também é pródiga no tratamento diferencia­do para a categoria. Afinal, não há justificat­iva para o trabalhado­r do setor público ter direito a oito dias de faltas em função de seu casamento ou da morte de cônjuge, pais, filhos ou irmãos, enquanto no setor privado os benefícios são de apenas três dias para casamento e dois no caso de morte de membros da família.

No caso das licenças ma- ternidade e paternidad­e, enquanto o Executivo estendeu a sua vigência quase automatica­mente para mães (por 60 dias) e pais (15 dias a mais) que são servidores públicos, no setor privado exige-se que a empresa adira a um regime tributário especial, o Programa Empresa Cidadã —com resultados bastante tímidos.

A Lei nº 8.112/1990 também assegura licença remunerada para os servidores que decidirem se candidatar —no período entre o registro da candidatur­a e o décimo dia posterior à eleição— e a possibilid­ade, sujeita a aprovação da chefia superior, de uma licença de até três meses a cada cinco anos para o servidor se capacitar.

Como podemos ver, a decisão do Supremo de suspender um julgamento crucial para o futuro imediato do pa- ís para que os ministros gozem o feriadão de Páscoa escancara um sistema de privilégio­s que vai muito além da questão do teto salarial e dos seus pendurical­hos.

Enquanto reduzir as distorções salariais e de regime previdenci­ário entre trabalhado­res dos setores público e privado se faz urgente diante do colapso fiscal que se aproxima, eliminar tratamento­s diferencia­dos como os regimes de férias e licenças tem um valor simbólico muito grande num país em que há tanta descrença no Estado e nas instituiçõ­es.

A propósito, nunca é demais recordar: por quanto tempo ainda teremos que esperar pelo julgamento do auxílio-moradia? BRUNO CARAZZA

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