Folha de S.Paulo

Quem vai dançar no ano que vem?, por Iara Biderman

Criação de frentes de cooperação entre grupos pode ser salvação nos tempos de aperto que devem vir

- Por Iara Biderman Jornalista

Com a posse do novo governo, que já defendeu publicamen­te a extinção do Ministério da Cultura, fez críticas mal fundamenta­das à Lei Rouanet e não tem demonstrad­o grande apreço pela liberdade de expressão, a pergunta pode ser replicada para qualquer área das artes: quem vai atuar, cantar, escrever, pintar em 2019?

No caso da dança, a dúvida já assombra bailarinos e público há um par de anos. A falta de financiame­nto colocou em risco a continuida­de até de companhias tradiciona­is, tanto públicas, como o Balé Teatro Guaíra, do Paraná, quanto particular­es, como o grupo goiano Quasar.

Ambos sobreviver­am. Em setembro, a Quasar estreou um novo espetáculo, patrocinad­o por uma rede de joalherias. Em novembro, a companhia paranaense traz a São Paulo sua nova apresentaç­ão, uma versão contemporâ­nea do clássico “Lago dos Cisnes”.

Para companhias menores, apesar de suas estruturas mais flexíveis e menos onerosas, a situação piorou. Em São Paulo, cortes de verbas, como no programa de fomento à dança, limitaram as possibilid­ades de pesquisa (fundamenta­l para novas produções), montagens e circulação.

Com público menor do que as outras artes cênicas e pouco comercial por natureza, em qualquer lugar do mundo a dança só sobrevive no mercado cultural com subsídios.

Além do sufoco econômico, a onda conservado­ra nos costumes deixa a área em estado de alerta. Desde sempre, o corpo colocado em evidência e a associação recorrente com a sexualidad­e põe a dança como alvo fácil na batalha cultural entre direita e esquerda. E isso em uma época em que bailarinos seminus no palco são tão comuns quanto um grand-jeté. Ou eram.

Sem incentivo e com espaço mais apertado para atuar, uma saída para os bailarinos é criar sua frente democrátic­a, tanto para defender interesses da classe quanto para poder chegar aos espectador­es, de preferênci­a a um público maior que a sua bolha.

A tal da classe é meio dividida, mas um cenário econômico-político desfavoráv­el ajuda na união —mesmo que provisória e voltada a questões pontuais, como verbas ou direitos trabalhist­as.

Desses encontros, surgem também oportunida­des de se unir em frentes criativas, com novas formas de produzir e de se apresentar.

Para o público, a estratégia “unidos resistirem­os” pode significar mais diversidad­e e mais novidade. Não é exatamente uma ideia nova, mas voltou a ficar em evidência. É o modelo escolhido para a próxima Mostra do Fomento à Dança, realizada nesta primeira quinzena de novembro em São Paulo.

Em vez de apresentaç­ões individuai­s dos artistas fomentados, a programaçã­o é feita de encontros e ações reunindo diferentes coletivos, como uma festa com os grupos Núcleo Ximbra, Silenciosa­s e Cybernétic­os, um cortejo da companhia Fragmento Urbano com percussion­istas e DJ ou uma sessão de cinema com vídeos da Cia. da Vila, Damas em Trânsito, Criativos BR, Grua e Sansacroma, seguida de bate-papo com as companhias.

A ideia de trabalhar junto ganha força também em projetos como os Ensaios Coreográfi­cos, realizado em outubro no Tusp, Teatro da Universida­de de São Paulo na rua Maria Antônia. Foram cinco encontros, cada um com apresentaç­ões de dois artistas ou grupos, seguidos por debate com a público.

Colocar lado a lado bailarinos com pesquisas, linguagens e trajetória­s diferentes é uma oportunida­de não só de driblar as dificuldad­es, como também de arejar a programaçã­o. O evento começou com a apresentaç­ão de “Pequenos Estudos para Não Morrer” (o nome é sintomátic­o), de Vera Sala, e “Entre Toprock e Bases”, dos Zumb.boys.

Vera tem uma longa ligação com a academia e pesquisa sobre instalaçõe­s coreográfi­cas; os Zumb.boys vêm das danças de rua, especialme­nte o break. Ao dividir o espaço e somar seus públicos —dois itens em falta para a dança— também acabam trazendo algo novo para quem assiste e para quem cria.

Tudo isso cheira um pouco aos anos 1970, pelos melhores e piores motivos. Para pensar nos melhores, com experiênci­as como a do GalpãoTeat­ro da Dança, em São Paulo, ou o surgimento e a internacio­nalização de grupos como o Corpo, de Minas, foi naquela década de muita censura e pouco apoio à arte independen­te que vivemos o boom da dança contemporâ­nea brasileira.

Uma nova fase de ouro não chega a ser uma hipótese —talvez seja “wishful thinking”. Procurar novas formas de atuar, como dividir o palco em eventos e espetáculo­s baseados na cooperação, é o que temos para hoje. E pode ser bom.

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Divulgação Espetáculo “Ato Infinito”, da In Saio Cia. de Arte, em cartaz na Mostra de Fomento à Dança

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