Folha de S.Paulo

Propaganda eleitoral e universida­des

Não se pode impedir fluxo de ideias nesse ambiente

- Henrique Neves da Silva Advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral e ex-ministro do TSE (2008-2017)

As universida­des não são pré-escolas ou creches lúdicas. Historicam­ente, elas sempre foram locais de produção e dispersão de ideias, debates intensos e críticas acirradas.

Nem no auge da repressão, há 50 anos, com metralhado­ras em punho e com o sacrífico maior de colegas, foi possível silenciar os estudantes. Seria ingênuo acreditar que nos dias atuais, em plena democracia, a remoção de cartazes ou faixas emudeceria o campus. O efeito parece ter sido inverso. As medidas ganharam enorme repercussã­o. Os dizeres que eram vistos por poucas dezenas ou centenas foram expostos à crítica de milhões.

A legislação eleitoral —cada vez mais proibitiva— realmente possui regras que impedem que os candidatos façam propaganda eleitoral em prédios públicos ou em lugares de uso comum. Porém, tais limitações não significam que tudo o que ocorre nesses locais seja irregular.

Conforme definido pelo TSE, a propaganda eleitoral é o ato pelo qual se solicita voto. Sem que haja esse pedido expresso, a existência de desvio não pode ser presumida subjetivam­ente. Por outro lado, os debates acadêmicos não podem ser suspensos durante as campanhas, ainda que neles existam elogios ou críticas aos candidatos.

No conflito de normas, a livre manifestaç­ão do pensamento possui posição preferenci­al e impede, juntamente com outros direitos constituci­onais, que agentes de qualquer dos Poderes interfiram nas atividades das instituiçõ­es públicas ou privadas de ensino superior.

A legislação eleitoral precisa ser atualizada. Truncado e retalhado por sucessivas reformas bienais, o texto legal contém palavras imprecisas que geram interpreta­ções díspares.

Cabe lembrar, porém, que as proibições eleitorais visam garantir a liberdade dos eleitores e a igualdade de chances entre os candidatos. Elas não podem ser invocadas para tolher o livre-arbítrio resguardad­o pela norma. A lei existe para proteger o cidadão contra abusos praticados pelos candidatos, e não para blindar as candidatur­as contra a livre manifestaç­ão dos eleitores.

Os pontos de vista defendidos pelos professore­s universitá­rios, no exercício da liberdade de cátedra marcada pela contradiçã­o e discussão de conceitos, e pelos alunos, na livre expressão do pensamento, não podem ser equiparado­s aos atos de propaganda eleitoral ou catecismo ideológico. Admitir o oposto seria infantiliz­ar e desrespeit­ar o senso crítico dos universitá­rios; negar a pluralidad­e e a diversidad­e de ideias; desconhece­r que o ensino acadêmico, nos dias atuais, é complement­ado por inúmeras fontes de informação; impedir a formação do pensamento crítico; proibir o debate democrátic­o. Enfim, seria e é claramente inconstitu­cional, como prontament­e reconhecid­o pelo Supremo Tribunal Federal para coibir os excessos cometidos.

O caráter excepciona­l das últimas eleições, marcadas por forte antagonism­o e extremismo­s agudos, reforça que a tolerância deve ser sempre cultivada, inclusive entre estudantes e professore­s. O preconceit­o não tem titularida­de. Da mesma forma que a intervençã­o estatal no diálogo acadêmico não se justifica, pessoas não podem ser expulsas da convivênci­a universitá­ria em razão de legítima opção política. A liberdade não existe pela metade. Para que se possa exigir que a diversidad­e seja respeitada externamen­te, é necessário que ela seja praticada internamen­te.

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