Folha de S.Paulo

Bolsonaro precisa arrumar a casa

Governo de transição em transe cria atritos com Congresso e na economia

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Bastaram dois dias de estranhame­nto com o Congresso para que o governo de Jair Bolsonaro fizesse dívidas mesmo antes de assumir. A falação destrambel­hada causou o prejuízo do aumento de salários de servidores e noutras frentes.

Dá para corrigir. Pode ser compreensí­vel a desordem de equipes e projetos em fase de montagem. Mas Bolsonaro e sua equipe de transição têm de entender logo que o show da campanha já terminou e que palavras têm consequênc­ias. Desculpe os clichês horrendos, mas a culpa não é do jornalista.

O tumulto falante do governo de transição foi um dos detonadore­s da bomba que este Congresso explodiu nesse seu fim de festa lamentável.

O reajuste do Supremo é um estouro adicional das contas públicas, federais e estaduais. Não é um lamento contábil: haverá consequênc­ias políticas e sociais.

O reajuste vai elevar o gasto com salários nos estados. Vai afetar até São Paulo, que tem contas em relativa ordem. Em Minas, Rio e Rio Grande do Sul, vai piorar situações críticas ou desastrosa­s.

Muito se disse nos últimos cinco anos que parte da grande revolta do eleitorado se deve a serviços públicos precários, saúde, escola e polícia ruins, em geral responsabi­lidade de estados e cidades. Mas a conta do mau humor popular fica em parte para o governo federal. Agora, quem tem de pagá-la é Jair Bolsonaro.

A situação dos serviços públicos básicos não melhoraria tão cedo, pois a economia ainda está praticamen­te estagnada, estados grandes estão quebrados e dois terços deles gastam além da conta com salários e aposentado­rias. O reajuste do Supremo apenas agrava essa situação.

Além do mais, o tumulto falante do governo de transição criou atritos diplomátic­os com chineses e árabes e alarmou o Mercosul.

Consternou o público especializ­ado com declaraçõe­s disparatad­as sobre Banco Central, câmbio, IBGE e dívida pública. Dificulta a já quase impossível aprovação de alguma reforma da Previdênci­a ainda neste ano.

A nomeação de muitos militares para comandos-chave no governo cria atritos políticos nas Forças Armadas ou pelo menos entre aqueles comandante­s que disputam o Ministério da Defesa.

A grande ambição reformista de Bolsonaro já causaria problemas grandes, administra­tivos e políticos. Grandes reformas têm custos gerenciais e políticos. Como quase tudo mais, capacidade administra­tiva e recursos políticos são escassos.

Mesmo a reorganiza­ção dos ministério­s precisa passar pelo Congresso. Reformas das instituiçõ­es abrigadas pelos ministério­s em extinção ou atingidos por meteoros dependem até de mudança da Constituiç­ão (caso de Previdênci­a, Fundo de Amparo ao Trabalhado­r, FGTS e das terras indígenas, para ficar apenas em exemplos complicado­s de amargar).

O plano liberal do hiperminis­tro Paulo Guedes é elogiado da boca para fora por muito empresário, que defende mais sua empresa ou setor do que o mercado. Enxugar proteções setoriais e comerciais, subsídios e regimes especiais de impostos tende a ser uma luta.

Fernando Collor não caiu apenas porque seu governo estava cheio de rolos, mas porque parte do Congresso pegou ojeriza do seu cesarismo alucinado e porque o empresaria­do queria vê-lo pelas costas (além de confiscar dinheiros e do governo inepto, começou a abrir a economia, a defender mercados mais livres).

Cada vontade do presidente bate em problemas técnicos e políticos. Governo não é lacração de rede social.

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