O Dia

A dor que dói mais

- Gabriel Chalita

AProfessor e escritor

na Clara está com muita dor. Já foi ao posto de saúde do vilarejo em que mora várias vezes. Não sabem dizer de onde vem a vermelhidã­o, nem o inchaço, nem as saliências que tornam uma das pernas quase que inútil. Os remédios caseiros já foram usados, os prescritos pelo médico que vez ou outra aparece, também. E nada.

Junior é o esposo. É ele quem leva a mulher e dela cuida. É ele quem trabalha e os alimenta. Ana Clara teve que deixar o emprego. Já faz semanas que essa perna a mantém assim, desesperan­çada. O marido decidiu ir com ela à capital. Moram longe os dois. O acesso é de barco. O barco leva alguns dias. A passagem custa mais do que podem pagar. E tem ainda que levar algum dinheiro. E saber se serão atendidos ou não. Não há ninguém por lá, onde moram, que tenha algum recurso que possa ser oferecido, mesmo como empréstimo. Pelo menos ninguém com a generosida­de necessária.

Há algum tempo, Junior realizou o sonho de comprar uma moto. Moto simples. Usada. A marca está, inclusive, apagada. Mas serve a moto para as distâncias necessária­s do ir e vir. Junior é entregador. Ganha pouco, mas aprecia o que faz. Gosta de trabalhar na liberdade do vento em região tão quente. Cuida da moto como algo precioso para o sustento e para o prazer.

Pois bem, no jantar de ontem, tomaram a decisão. Junior vai vender a moto. É a única forma de conseguir algum dinheiro para cuidar do seu amor. Ana Clara ainda argumentou que esperasse um pouco. Quem sabe o novo remédio resolveria. Resolveu ele que o tempo da espera já passou. Que era preciso por fim àquela dor. Ana Clara disse ao marido que doeria nele ter de vender a moto. Ela sabe quanto foi difícil para ele comprar. Demorou 2 anos pagando, mês a mês, as prestações. Ele olhou para mulher e perguntou: “Você tem dúvida de onde dói mais? Ficar sem a moto ou saber da sua dor?

O cabelo de Ana Clara estava molhado. Ela sentada em um sofá simples com uns panos de enfeite. A perna esticada em um suporte improvisad­o. Tudo muito bonito em um cômodo pequeno desse interior grande do Brasil. A conversa de ontem foi encerrada com um beijo e um toque delicado de boa noite. Dormiram os dois em um quarto esfriado por um ventilador ranhento. Mas o importante é que estavam juntos. Ali. Encostando, de vez em quando, um no outro. Acariciand­o e distribuin­do beijos adormecido­s.

Acordaram. A manhã seria de despedida. O comprador da moto já era conhecido. Pagaria menos do que Junior pagou, mas é o que menos importa. O que importa é providenci­ar logo a viagem. E cuidar do andar de sua esposa. E aliviar a dor do seu amor. E sentir-se útil tomando a decisão correta.

Tem barco saindo no fim da tarde. O dia é pequeno, mas suficiente para o que deve ser feito. A esposa olha orgulhosa do marido. Jovens. Apaixonado­s. Nascidos à beira de um grande rio e felizes por viverem ali. Juntos. Pena que faltem algumas coisas. Pena que as doenças existam. Pena que os generosos nem sempre têm o necessário.

Andando com dificuldad­e, ela arruma o que vão levar, enquanto ele resolve o resto. No barco, dormirão juntos, ouvindo os barulhos da noite e sonhando com dias sem dor.

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