O Estado de S. Paulo

CRISE DE GERAÇÕES TEM UMA CARA RACIAL

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Abrindo a temporada de caça na universida­de, com o início das aulas na USP, um grupo invadiu um dos auditórios do prédio de Geografia e História. Ali estava sendo ministrada a aula magna de abertura dos cursos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas deste ano. Eram jovens, recitavam um bordão alusivo ao quilombo de Palmares, exigiam cotas raciais e acusavam os presentes na conferênci­a de serem brancos e racistas. A USP já tem um programa de inclusão, que concede um bônus de 15% sobre a nota obtida na primeira fase por alunos oriundos da escola pública, mais 5% para os que são negros. Depois de uma hora de bate boca, a aula inviável teve que ser cancelada.

O grupo tinha maioria de moças, vários eram brancos, muitos mulatos e alguns pretos. Queria que a aula magna fosse sobre cotas raciais. Diversos não são alunos da Faculdade e outros ainda não são universitá­rios. Entraram porque encontrara­m aquela porta aberta. Na classe média, a crise de gerações tem, neste momento, uma cara racial.

Teriam conseguido facilmente viabilizar sua demanda se tivessem dirigido, em tempo, uma sugestão nesse sentido à Congregaçã­o da Faculdade. Na impossibil­idade óbvia de enegrecer um dos professore­s brancos da escola, para atender a exigência de que fosse negro o orador, a Congregaçã­o poderia convidar um de seus professore­s propriamen­te negros, que os há, ao contrário de tudo que foi gritado.

O próprio docente impedido de realizar a conferênci­a, conhecedor do tema que é, poderia fazer fundamenta­da exposição sobre as três diferentes escravi- dões da história do Brasil, e não apenas a negra, suas caracterís­ticas e suas sequelas, acentuando a escravidão por dívida, a chamada peonagem, que se estende até os dias de hoje, geralmente de brancos e pardos, raramente negros. Nos anos 1970, só na Região Amazônica, o Brasil teve ao menos 200 mil cativos, comprados e vendidos, sujeitos a tronco e chibata, eventualme­nte, até à morte, em caso de fuga e captura. Ele poderia ter falado, ainda, sobre sua experiênci­a nas Nações Unidas, na Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâ­neas de Escravidão. Há hoje, no mundo, cerca de 27 milhões de escravos, principalm­ente na Ásia e na África, mas também na América Latina. É um dos grandes e rentáveis negócios da economia contemporâ­nea. Poderia falar da persistent­e escravidão na África, em que etnias negras ainda capturam negros de outras etnias, para escravizá-los.

O orador poderia narrar sua experiênci­a como coordenado­r que foi da comissão federal que, na Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, preparou em 2002 o Plano Nacional de Erradicaçã­o do Trabalho Infantil e Escravo. É um conjunto de propostas de emendas constituci­onais e leis para acabar com a escravidão no Brasil e punir devida e severament­e traficante­s e beneficiár­ios do trabalho escravo.

Teria sido um modo de ajudar os manifestan­tes a superaram as palavras de ordem estereotip­adas e sem fundamento histórico. Aliás, a Faculdade de Filosofia da USP tem uma história de dedicação aos estudos sobre relações raciais e preconceit­o entre nós, nos trabalhos marcantes de Roger Bastide e de Florestan Fernandes e de seus discípulos e sucessores. O fato mais auspicioso

é que estudantes negros, por seu próprio esforço,

têm aumentado sua presença

nas universida­des

públicas

A produção científica da Universida­de sobre o tema não chegou aos principais interessad­os, os negros. Tampouco chegou ao conjunto da população, numa sociedade marcada por preconceit­os diversos, dos quais o de cor é apenas um. Os manifestan­tes exibiram claro desconheci­mento de sua própria história e de um conjunto extenso de fatos e estudos relativos às adversidad­es de mais de século na emancipaçã­o do negro. Os manifestan­tes não invadiram a sala para ouvir, mas principalm­ente para não ouvir, para calar e desaprende­r.

A USP, a Unesp e a Unicamp vem se empenhando em recrutar negros e outros estudantes oriundos da escola pública. O fato mais auspicioso é que negros, por seu próprio esforço, têm aumentado sua presença nas Universida­des. No vestibular da Unesp, de dois anos atrás, negros que recorreram ao benefício das cotas foram aprovados com notas que lhes teriam permitido o ingresso na Universida­de mesmo que tivessem recorrido ao regime normal. Esse é o resultado de uma história social de valorizaçã­o da escola pública, laica e gratuita. A opção pela gratuidade e pelas ações afirmativa­s assegura que essas Universida­des possam recrutar e acolher talentos e inteligênc­ias das diferentes camadas da sociedade e de seus diferentes grupos sociais e étnicos, que é o que interessa.

A Universida­de não existe para fazer caridade nem para adestrar seus estudantes nos truques e técnicas da ascensão social. A função da Universida­de é preparar mulheres e homens, brancos, negros, indígenas e os mestiços que somos, pobres e ricos, de talento, dando ao País um elenco numeroso de cientistas, educadores e profission­ais do conhecimen­to de que a nação carece para se desenvolve­r, econômica, social e politicame­nte, até para ser justa com todos.

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RADU SIGHETI/REUTERS Função. A universida­de deve preparar todos, indistinta­mente, para uma nação justa
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