O Estado de S. Paulo

Na montanha, com Gabriel Buchmann

Fellipe Barbosa e seu belo tributo ao amigo que morreu na África; filme venceu o prêmio da crítica na 41.ª Mostra

- Luiz Carlos Merten

Havia urgência no longa anterior de Fellipe Barbosa. Casa Grande filia-se a uma tendência do cinema brasileiro que inclui O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, e Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Um garoto em plena erupção dos hormônios e numa casa – numa família – que está implodindo, até mesmo economicam­ente. Barbosa gosta de acreditar que Gabriel e a Montanha, seu novo longa, começa onde o outro termina. O que ocorreu com aquele garoto que talvez ainda não saiba o que quer da vida, mas com certeza sabe o que não quer, e é aquela vida protegida no casulo da casa grande? O garoto foi para a África.

Gabriel foi premiado em Cannes, em maio, na mostra Semana da Crítica. Teve ótimas críticas na França – torrentes de elogios nos jornais Libération e Le Monde, quatro páginas (quatro!) na prestigiad­a revista Cahiers du Cinéma, incluindo duas de entrevista com o diretor. E na quarta, 1.º, recebeu o prêmio da crítica como melhor filme brasileiro da Mostra. E isso sem contar os demais festivais de que participou – Jerusalém, Munique, Odessa, Sarajevo, etc. E, claro, o Festival do Rio e a já citada Mostra de São Paulo.

O Rio teve um sabor especial. Fellipe Barbosa sempre soube que havia um componente muito grande de risco em Gabriel e a Montanha. O filme inspira-se numa história real, e de alguém próximo a ele. Seu amigo – brodaço! – Gabriel Buchmann. Barbosa fez o filme cheio de entusiasmo e esperança, caracterís­ticas do próprio Gabriel, mas também, admite, com temor. E se não funcionass­e? Estaria traindo o amigo? Seria sua segunda morte? A sessão do filme no Festival do Rio foi catártica. A mãe de Gabriel já havia visto o filme em Cannes (leia abaixo). No Rio, foram todos os amigos. Reencontra­ram Gabriel na tela, na interpreta­ção de João Pedro Zappa. “Choravam abraçados comigo. Foi muito emocionant­e”, diz o diretor.

Fellipe viajou muito. Estudou nos EUA, foi dar um curso de cinema – roteiro – na África. “Amei Uganda, queria ficar. Quando Gabriel foi para a África para estudar a pobreza, que seria o tema de seu doutorado em políticas públicas, os amigos acharam loucura, mas eu entendi aquilo. Estávamos um tanto afastados, cada um vivendo sua vida, quando recebi um e-mail de Uganda. Percebi nele o mesmo desejo de ficar que tive. Quando desaparece­u, surgiu o rumor de que teria sido assassinad­o, mas eu achava que não. Apesar das violências tribais, é um povo muito hospitalei­ro. Gabriel morreu de hipotermia quando tentava escalar o monte Mulanje, no Malauí. Quando resolvi fazer o filme, voltei duas vezes para pesquisar, em 2011 e 15. Fui a quatro países, comecei a procurar os lugares, as pessoas que cruzaram seu caminho. Algumas histórias foram incríveis. O guia do Gabriel tinha virado mendigo em Zanzibar. E o encontrei por acaso.”

O que Fellipe apreendeu dessa história, e da sua obsessão para fazer o filme – que consumiu muito tempo –, é que, por mais que exista essa coisa, seja fatalidade ou destino, isso não elimina nossas escolhas. “A subida da montanha é algo mítico. Dizem que o (JJR) Tolkien teve a inspiração para O Senhor dos Anéis no Mulanji. A montanha tem essa coisa do desafio, da superação. Tive de fazer montanhism­o para me preparar, porque, afinal, ia fazer uma equipe subir amontanha comigo. Na França, acrítica viu muito a questão da morte. A passagem. Claro que faz sentido. Toda avidada genteéu ma caminhada para a morte. Mas não queria, pelo Gabriel, que o filme fosse visto só assim. Acho que tem muita vida nele, na forma como o Zappa cria o papel.”

E Barbosa confessa suas surpresas. “Achava que nesse mundo tão materialis­ta, tão cínico, o Gabriel idealista da primeira parte ia seduzir as pessoas como personagem. Quando chega a Chris, a namorada, explodem as contradiçõ­es, e agora eu sei queéapart ir daí que aspes soasse envolvem mais .” A ou traco isaé que o diretor, que utilizou apenas dois atores,Zappa e Carolina Abras –, o restante do elenco é de não profission­ais, recrutados nos países em que filmou, sempre pensou em mostrar o filme para eles, em seu habitat. “Vai ser coisa para 2018, este ano está muito corrido. O único que já viu foi Leonard Siampala, que faz o massai e foi com agente para Cannes .”

Foi a coisa mais linda do mundo. “Havia uma paranoia de segurança no palais. Todo mundo era revistado, sessões foram interrompi­das e chegou aquele negro imenso, com seu facão de massai e ele passava majestoso pela seguranças, sem que ninguém o parasse. Da sua comunidade, ele foi o único que saiu para o mundo. E o mundo, para ele,éot apete vermelho de Cannes. O Gabriel ia adora risso .”

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TV ZERO/GAMOROSA FILMES/CANAL BRASIL/ARTÉ Elogios pelo mundo. Filme teve ótimas críticas principalm­ente na França, com elogios nos jornais ‘Libération’ e ‘Le Monde’
 ?? WILTON JUNIOR/ESTADÃO ?? João Pedro Zappa. O Gabriel da ficção; ao lado, Fátima, a mãe, com foto do filho
WILTON JUNIOR/ESTADÃO João Pedro Zappa. O Gabriel da ficção; ao lado, Fátima, a mãe, com foto do filho

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