O Estado de S. Paulo

OS PROFETAS DO INESPERADO

- Martim Vasques da Cunha ✱

Em 1710, o filósofo irlandês George Berkeley afirmou que “ser é ser percebido” (esse est percipi ). Era o princípio de uma metafísica idealista, mas sem saber ele também resumiu o comportame­nto da classe intelectua­l nos últimos 300 anos. Quem faz parte desta casta cumpriu tal atitude: enganar o distinto público, dando a impressão de que ela parecia saber alguma coisa, quando, na verdade, não sabia de nada.

Na contramão desta tendência, tivemos os exemplos dos alemães Eric Voegelin (19011985) eLeoStraus­s (1899-1973), que, entre outrosscho­lars(c omo EricWe ile Micha e lP olanyi ), mostraram que o conhecimen­to produzido po reles era o fruto d eques er ver da deiroéa única coisa importante.

Uma amostra do trabalho desses dois gigantes do pensamento político do século 20 chega finalmente às mãos dos leitores brasileiro­s com a publicação da troca de cartas entre ambos no volume Fé e Filosofia Política – A Correspond­ência de Leo Strauss e Eric Voegelin, 1934-1964.

O vislumbre de ler esta “aventura da conversaçã­o” é inigualáve­l – e por dois motivos. Em primeiro lugar, o período no qual ocorreu a conversa epistolar. Foram justamente nesses anos críticos, tanto para os dois estudiosos com opara ores todo mundo, que acrise espiritual do Ocidente atingias eu ápice– e afilo sofia política pareci achegara um impasse por não conseguir articular o pandemônio que então dominava a nossa sociedade. Strauss e Voegelin tentaram entender o que acontecia, sem reduzir arbitraria­mente a natureza humana e, o mais importante, sem chegarem às soluções fáceis (e, em geral, erradas) das ideologias políticas, seja o nazismo, o comunismo, o liberalism­o, o pluralismo, o conservado­rismo e outros “ismos” que pululam por aí.

O segundo motivo é que temos a certeza de que, apesar de serem dois colossos da filosofia, eles eram, antes de tudo, seres humanos. Discutiam os únicos assuntos importante­s para a nossa convivênci­a em sociedade: fofoca e metafísica, não necessaria­mente nessa ordem. Para a sua satisfação mundana, o leitor encontrará material de sobra em relação às maledicênc­ias proferidas por Voegelin e Strauss sobre os intelectua­is que aplicavam o princípio de Berkeley na vida do espírito. E, sem dúvida, aqui, o troféu desta categoria vai para a famosa carta na qual o autor de A Nova Ciência da Política (1952) simplesmen­te desanca, numa surra verbal, o que ele realmente pensava sobre a obra de Karl Popper, em especial o clássico A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945), que afirmava que Platão seria o precursor dos regimes totalitári­os do século 20. Para Voegelin, defensor da filosofia platônica como o caminho correto para a recuperaçã­o do intelecto após a tragédia da 2.ª Guerra Mundial, o austríaco era “uma pedrinha que eu preciso o tempo todo ficar chutando para fora do caminho”, uma vez que Popper seria “filosofica­mente inculto, um brigão ideológico”, “um intelectua­l fracassado”, e, para terminar a lista de insultos primorosos, um “patife, impertinen­te e palhaço”. Imaginase Leo Strauss lendo esta carta com um sorriso sardônico e, como era outro aficionado por Platão (conforme notamos em seus essenciais Da

Tirania e A Cidade e o Homem), mostrou-a ao colega Kurt Riezler para impedir a nomeação de Popper na Universida­de de Chicago – o que de fato aconteceu. Afinal, quem nunca aplicou o aforismo de George Berkeley nesta vida, mesmo com a melhor das intenções?

Mesquinhar­ias à parte, a correspond­ência também tem sua boa dose de discussão sobre metafísica – e política. Para os dois, ao contrário do que pensava a maioria dos seus pares, essas esferas jamais estiveram separadas e sim conectadas pela tensão que sempre existiu entre fé e razão. Contudo, era exatamente neste ponto que os colegas discordava­m entre si. Na perspectiv­a de Strauss, a revelação judaico-cristã não dialogava com as virtudes racionais descoberta­s por Sócrates, Platão e Aristótele­s, enquanto que, na visão voegeliana, ambas seriam estruturas fundamenta­is (e, mais, permanente­s) da natureza humana que decifraria­m o que o filósofo de Colônia chamava de “experiênci­as extremas” – como a busca por um sentido na vida, o julgamento da consciênci­a no momento da nossa morte e a esperança de imortalida­de e, enfim, paz após este “vale das sombras”.

Em todo caso, o que os unia era o fato de que eles se viam como verdadeiro­s profetas. Eram sentinelas que não se importavam se prediziam a destruição ou a salvação do mundo, e sim apenas o inesperado, o “humanament­e imprevisív­el” – aquilo que falava somente pelo e para o espírito de uma presença já perdida entre nós. E isto, numa época na qual o lema de George Berkeley ainda ecoa nos corredores da nossa elite intelectua­l, não é pouca coisa.

É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

Livro reúne as cartas trocadas entre filósofos alemães Leo Strauss e Eric Voegelin, que falam de Platão aos rumos da humanidade

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UNIVERSITY OF CHICAGO Política. Leo Strauss evitou as soluções fáceis das ideologias
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É REALIZAÇÕE­S Metafísica. Fé e razão são estruturas fundamenta­is para Voegelin
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AUTORES:
LEO STRAUSS E ERIC VOEGELIN TRADUÇÃO:
PEDRO SETTECÂMAR­A
EDITORA: É REALIZAÇÕE­S 287 PÁGS., R$ 89,90
FÉ E FILOSOFIA POLÍTICA AUTORES: LEO STRAUSS E ERIC VOEGELIN TRADUÇÃO: PEDRO SETTECÂMAR­A EDITORA: É REALIZAÇÕE­S 287 PÁGS., R$ 89,90

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