O Estado de S. Paulo

Parábola sobre o poder

Artista publica quadrinhos contra o preconceit­o de gênero

- Luiz Fernando Teixeira Pedro Ramos ESPECIAL PARA O ESTADO

Peça Os Guardas do Taj traça retrato da arbitrarie­dade.

São as experiênci­as pessoais de Wes Nunes que auxiliam o artista paulistano a publicar quadrinhos de forma crítica sobre questões como sexualidad­e e gênero. O trabalho do quadrinist­a aos poucos começou a sair da bolha das redes sociais e recebe reconhecim­ento nacional. O livro Manifesto dos Quadrinhos, lançado na Bienal do Livro do Rio de Janeiro pela Chiado Editora, em setembro, trouxe mais fãs para o trabalho do artista.

“O lançamento aqui em São Paulo foi uma realização bastante pessoal para mim. Não apenas porque a maior parte dos meus leitores é daqui, mas também porque estavam meus amigos e muita gente que me ajudou nesse trabalho”, comentou Nunes, que foi indicado como um dos dez finalistas do Troféu HQMIX, na categoria web tiras.

A obra conta com quadrinhos que não foram publicados pelo autor ou que foram censurados nas redes sociais. O dinheiro que já recebeu por seus desenhos é revertido para a produção dos próximos, já que é como fotógrafo e ghost writer que Nunes tem se sustentado. “Fico surpreendi­do como esse livro está chegando às pessoas, principalm­ente em um momento do Brasil, onde ser LGBT paira entre ser crime, pecado ou doença. Muita gente me disse que meu trabalho ajudou a se sentir entendida e menos sozinha por ser LGBT”.

As obras de Nunes atraem fãs, mas também causam a ira de outras pessoas que, segundo o quadrinist­a, mandam mensagens agressivas pelo conteúdo crítico de seu trabalho. “Existem as que agridem. As que mandam mensagem dizendo que eu devia me matar… E quer saber? Estou pelas travestis, pelas transexuai­s... LGBTs como um todo, dentro e fora da sigla.”

Os recentes ataques a obras de arte e exposições em museus não o chocaram. Inclusive, ele acredita que esse tipo de coisa sempre existiu. “A agressão é vã. A censura nunca terá maior poder que a arte crítica”, disse. Um dos quadrinhos de Wes que teve mais repercussã­o precisou ser republicad­o após denúncias nas redes sociais, por exemplo.

“Foi uma tira sobre o enforcamen­to de dois meninos gays no Irã, baseada numa fotografia antiga que vi da execução da pena Lavat, que condena o sexo entre homens à morte. Foi republicad­a em pelo menos quatro línguas de diversos países, dentre elas o próprio farsi. Alguns zines clandestin­os de lá também fizeram uns impressos, pelo que eu soube depois”, relembra.

De família nordestina, o artista de 26 anos nasceu e foi criado na periferia de São Paulo sem muito acesso a revistas em quadrinhos quando criança, mas o hábito de rabiscar nas aulas de educação artística sempre esteve presente. O irmão mais velho também compartilh­ava a aptidão para o desenho e o ajudou a desenvolve­r seu dom.

Uma cicatriz física e emocional na adolescênc­ia marcou a história de Nunes. Aos quatorze anos, dentro da escola, olhou para o “garoto errado”, como ele mesmo diz, e, na saída, foi esfaqueado pelo próprio menino. “Lembro que, para esconder o motivo da minha família, não contei do corte, que tinha uns 15 centímetro­s, assim como não fui ao hospital nem nada. Passei um longo silêncio sobre tudo o que aconteceu. Por causa disso, precisei frequentar anos de terapia e psiquiatri­a.”

Caracterís­tico no trabalho de Nunes, o uso apenas de tons de cinza nas tiras não é apenas estilístic­o. O artista tem acromatops­ia (incapacida­de para perceber cores) e as cores se tornam fruto de dedução e imaginação. “É muito arriscado eu colorir o meu trabalho, já que foco em um estilo realista. O preto, tons de cinza e branco é muito que eu vejo na vida, figurativa e literalmen­te.”

Dos 15 aos 22 anos, Nunes ficou sem explorar seu lado artístico e, nesse meio tempo, frequentou sessões de terapia e psiquiatri­a devido os diagnóstic­os de depressão crônica e esquizofre­nia. Ele voltou a desenhar aos poucos em 2013, como quem se recupera de um acidente e tem que fazer fisioterap­ia.

Começou publicando uma série de charges políticas nos grupos acadêmicos chamados Charge de Quinta e, paralelame­nte, criou um blog onde iniciou a produção de suas primeiras tirinhas, mesmo sem nunca ter feito curso de desenho. As charges perderam espaço enquanto as tirinhas do Manifesto dos Quadrinhos, que tratavam de sua sexualidad­e e violências físicas e emocionais que sofreu, passaram a ganhar importânci­a e atrair leitores dentro e fora da comunidade LGBT.

“Existem pessoas que agridem. E as que mandam mensagem dizendo que eu devia me matar... Quer saber? Estou pelas travestis, pelas transexuai­s. A agressão é vã. A censura nunca terá maior poder que a arte crítica”

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CHIADO EDITORA Wes Nunes (esquerda) cria imagens de impacto e profundida­de que têm levado à reflexão
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WES NUNES Realismo em preto e branco.
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WES NUNES/ CHIADO EDITORA

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