O Estado de S. Paulo

Senso de missão e pragmatism­o

- •✽ ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK ✽ ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

Levará algum tempo até que o País possa ter um entendimen­to mais claro e completo da eleição de Jair Bolsonaro. Entre muitos aspectos notáveis, chama a atenção que, numa democracia tão grande e complexa, meia dúzia de pessoas, sem financiame­nto, com poucos segundos de acesso à propaganda eleitoral na televisão, sem apoio da mídia e em confronto aberto com o establishm­ent político do País, tenham logrado levar à frente, com tamanho sucesso, um projeto de conquista da Presidênci­a da República.

São compreensí­veis, pois, o clima de triunfalis­mo e o sentimento de autossufic­iência que agora se detectam no entorno do presidente eleito. Seria esperar demais que, nessas circunstân­cias, o grupo tivesse resistido à tentação de se permitir uma esbórnia de autocongra­tulação. O que, sim, será preocupant­e é se o triunfalis­mo e o sentimento de autossufic­iência se revelarem menos efêmeros do que deveriam ser. E passarem a permear as complexas decisões que o governo eleito agora tem pela frente.

Não cabe dúvida sobre a gravidade do quadro de insustenta­bilidade fiscal a ser revertido. Mas não se espera que o novo governo seja capaz de assegurar reversão imediata e espetacula­r desse quadro. O que é fundamenta­l é que, tão logo quanto possível, o governo seja capaz de delinear com clareza seu plano de jogo na área fiscal. Quais, entre as muitas medidas que chegaram a ser aventadas, serão afinal adotadas?

Como bem sabe quem quer que tenha acompanhad­o sua trajetória com o mínimo de atenção, Paulo Guedes chega ao governo com um acentuado senso de missão, imbuído da convicção de que, afinal, tem diante de si uma oportunida­de única e imperdível de transforma­r de vez o País. E, no que tange à agenda que se faria necessária, jamais escondeu sua marcada preferênci­a por soluções grandiosas e seu menosprezo por alternativ­as de menor alcance. Tudo indica, contudo, que o novo ministro de Economia terá de saber refrear excessos do seu senso de missão, para adequar as medidas contemplad­as à escassez de recursos políticos com que terá de lidar para viabilizá-las. O momento parece exigir postura mais pragmática. Rearranjos excessivam­ente ousados estão fadados a acirrar resistênci­as, não só no Congresso, como no próprio Planalto. Há que saber evitar desgastes desnecessá­rios e não pôr à prova as convicções dos que terão de aprovar as soluções contemplad­as.

No programa de reformas que pretende viabilizar, a nova equipe econômica terá de evitar abrir mais frentes de batalha do que seus escassos recursos políticos permitirão manter. A decisão de abandonar o discurso da campanha eleitoral e anunciar que, afinal, o novo governo decidiu aproveitar, com possíveis alterações, o projeto de reforma da Previdênci­a que já está em tramitação no Congresso foi um bom sinal. Mostrou que, nesta questão crucial, prevaleceu o pragmatism­o.

Com o aumento da fragmentaç­ão das bancadas parlamenta­res, salta aos olhos que a articulaçã­o do Planalto com o Congresso está fadada a se tornar bem mais difícil do que já era. Mais difícil ainda quando se tem em conta a limitada capacidade de articulaçã­o política com que contará o novo governo, agravada pela resistênci­a de Bolsonaro a dar qualquer tipo de sobrevida ao presidenci­alismo de coalizão.

Maior ainda será o desafio de assegurar apoio parlamenta­r confiável para aprovação de emendas constituci­onais exigidas pelas reformas. Um Congresso mais à direita não significa necessaria­mente um Congresso mais comprometi­do com a responsabi­lidade fiscal. Muitos dos parlamenta­res recém-eleitos podem até parecer mais conservado­res no que tange a costumes e segurança pública. Mas, em grande medida, pertencem a corporaçõe­s aguerridas de servidores públicos, como bem ilustra a nova bancada do PSL.

É preciso ter em conta que parte importante da agenda de extração de benesses do Estado tem sido uma agenda de direita. E que boa parte da direita, Bolsonaro inclusive, está longe de ser liberal.

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