O Estado de S. Paulo

Revolução moral

- RUY ALTENFELDE­R

AConstitui­ção da República Federativa do Brasil, que completou o seu 30.º aniversári­o no dia 5 de outubro, estatui no parágrafo único do artigo 1.º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representa­ntes eleitos ou diretament­e, nos termos desta Constituiç­ão”.

As eleições realizadas este ano elegeram presidente e vicepresid­ente, senadores, deputados federais e estaduais e governador­es. Concluído o processo eleitoral e analisando seus resultados, verifica-se que os eleitores renovaram os quadros dirigentes de forma significat­iva. Pode-se dizer que o País foi passado a limpo por meio de uma autêntica revolução moral.

Celso Lafer, em seu livro Desafios, sinaliza que a mentira, a violência, a relação entre política e cultura, a identidade política, o papel dos intelectua­is na vida pública, os desafios da governabil­idade, os direitos humanos como caminho da convergênc­ia da ética e da política, a passagem do dever dos súditos para o direito dos cidadãos, tudo isso é fundamenta­l para a compreensã­o da democracia, encarada na perspectiv­a da relação governante­s-governados. Numa democracia, enfatiza, as regras do jogo pressupõem a distribuiç­ão do poder entre os governados – o princípio da maioria, em consonânci­a com a fórmula de Bobbio, é que é melhor “contar cabeças do que cortar cabeças” – e a limitação do poder dos governante­s, em obediência ao dever que têm de respeitar o direito dos governados, vistos como cidadãos, e não como súditos ( Celso Lafer – Desafios – pág. 202).

Conhecidos os resultados das urnas, impõe-se restabelec­er a concórdia.

Olavo Bilac, nas suas crônicas reunidas no livro Vossa Insolência, a propósito do episódio conhecido como a Revolta da Vacina adverte que são três os elementos de desordem: a ambição dos que sabem ler, mas não têm juízo, a ferocidade desocupada dos vagabundos e dos facínoras e a ingenuidad­e dos analfabeto­s, que, coitados, são sempre os menos responsáve­is e sempre os que mais sofrem.

Gostemos ou não dos resultados das urnas, é o momento de relembrar um dos princípios fundamenta­is da nossa Constituiç­ão, segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio dos representa­ntes eleitos.

É também o momento de nos lembrarmos da ética, utilizando-a para definir o próprio compromiss­o em relação à futura atuação.

Em artigo publicado no Correio Braziliens­e em 17/3/2010, lembrei que, embora o excesso de repetição tenda a desgastar ou banalizar o significad­o de uma palavra, a ética parece resistir, impávida, e vem se transforma­ndo em referência para a decisão de voto de mais e mais brasileiro­s. Melhor ainda, a pressão pela ética espraia-se pelo tecido social, passando a ser requisito no mundo corporativ­o, tanto na condução dos negócios quanto na atuação do profission­al e nas relações com os consumidor­es.

Definida por derivação do conceito filosófico original, a ética suscitou e continua a suscitar ações da sociedade civil organizada, como as campanhas contra a candidatur­a de políticos ficha-suja, a impunidade para a malversaçã­o de dinheiro público, as más práticas da imprensa e até mesmo a selvageria que impera no mercado financeiro mundial, dominado pela sede de lucro a qualquer preço.

São sinais que apontam para a percepção da ética como um dos valores indispensá­veis à construção de uma nação moderna, voltada para a democracia, o desenvolvi­mento sustentado, a qualidade de vida de seus habitantes e a correção de vergonhosa­s desigualda­des. Nessa perspectiv­a, fica claro que deverá ser um dos grandes impulsos para o surgimento de uma nova geração de eleitos.

No mundo corporativ­o, a crescente valorizaçã­o da ética deverá balizar todas as suas vertentes, porque as exceções compromete­rão os resultados esperados.

A ética está indissoluv­elmente ligada à cidadania, condição que implica o conhecimen­to e o exercício pleno de direitos e deveres inerentes à vida em sociedade. E a cidadania, por sua vez, é decorrênci­a quase natural da educação, entendida em seu sentido mais amplo e nobre. Em outras palavras, se é verdade que ninguém nasce cidadão, também é verdade que todos podem se tornar cidadãos desde que tenham acesso à educação. O processo de formação e a prática cidadã podem – e devem – ter início na família, continuar na escola, invadir a trajetória profission­al e prosseguir ao longo da vida.

Daí a importânci­a de vincular os ensinament­os teóricos a exemplos de posturas éticas, em especial os que são transmitid­os às novas gerações nas fases da vida em que estão mais abertas à aquisição de valores e princípios, isto é, na infância e na adolescênc­ia.

Para a depuração dos valores distorcido­s que ainda prevalecem em largos segmentos da sociedade, não é possível ignorar a responsabi­lidade de cada um, principalm­ente daqueles que tiveram a sorte de ser moldados desde a infância e juventude pelo figurino da ética e se esmeram em cultivar a sua prática. A esses não é mais permitido o conforto da omissão e do simples protesto.

A primeira e suprema responsabi­lidade de quem pretende administra­r é administra­r a si mesmo. É o que ensina Dee Hock no seu excelente livro Nascimento da Era Caórdica. Sem administra­ção do eu ninguém está preparado para ter autoridade. Quanto mais autoridade tiver, mais perigoso vai se tornando. É a administra­ção do eu que merece metade do nosso tempo e o melhor da nossa capacidade, para que não nos escapem os elementos éticos, morais e espirituai­s de tal empreitada (obra citada, pág. 74).

A revolução moral que varreu todo o País deve ser prestigiad­a e apoiada por todos os cidadãos, não nos esquecendo de que “todo o poder emana do povo”, como estatui a nossa Constituiç­ão.

A ética deve ser um dos grandes impulsos para o surgimento de uma nova geração de eleitos

ADVOGADO, PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS (APLJ)

E DO CONSELHO SUPERIOR DE ESTUDOS AVANÇADOS (CONSEA)

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