O Estado de S. Paulo

Imprensa, recados de uma eleição

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Recentemen­te, em reunião com jornalista­s e executivos do Grupo Rede Amazônica, fiz o seguinte comentário: “Um fenômeno chegará ao poder. Sem partido, sem dinheiro, sem mídia, sem tempo de televisão e confinado ao quarto de um hospital”. Pois bem, amigo leitor, o candidato azarão, quase folclórico, subirá a rampa do Palácio do Planalto na abertura de 2019.

Muitos são os recados dessa eleição disruptiva: partidos tradiciona­is, velhos caciques da política e gurus do marketing, habituados ao conforto das jogadas previsívei­s, estão nocauteado­s.

Nós, jornalista­s, executivos de mídia e formadores de opinião, devemos fazer uma sincera autocrític­a. Precisamos repensar as nossas coberturas e a nossa capacidade de dialogar com a sociedade real.

As mídias sociais, molas propulsora­s da candidatur­a de Jair Bolsonaro, podem ser a alavanca para um renovado jornalismo de qualidade. As pautas não estão dentro das redações ou escondidas nas nossas idiossincr­asias ideológica­s. Elas estão quicando nas ruas, no rosto das pessoas, no fascínio do cotidiano.

Sentir o cheiro da notícia. Persegui-la. Buscar novas fontes e encaixar as peças de um enorme quebra-cabeça para apresentá-lo o mais completo possível. Dentre as competênci­as necessária­s para exercer um bom jornalismo, algumas parecem ser inatas e, por mais que se tente aprender, inútil será o esforço. É assim o tal “faro jornalísti­co”. Uma capacidade quase inexplicáv­el que alguns profission­ais têm de descobrir histórias inéditas, de furar a concorrênc­ia e manter pulsando a certeza de que é possível produzir conteúdo de qualidade que sirva ao interesse público.

Nunca se pôs em xeque o papel essencial do instinto jornalísti­co. Nem eu pretendo fazê-lo agora. Como já venho reiterando há tempos neste espaço, apenas essa vibração será capaz de devolver a alma que, por vezes, percebo faltar ao trabalho das redações. O que quero é acrescenta­r um aspecto que julgo importante nesta discussão: na era digital, a intuição pode e deve ser apoiada pelos números.

Realidades que pareciam alheias aos negócios da mídia estão cada vez mais próximas dos veículos. É o caso do Big Data. A cada dia os acessos digitais aos portais de notícias geram quantidade­s incríveis de dados sobre o comportame­nto de nossas audiências, mas ainda não fomos capazes de enxergar o potencial que há por trás dessa montanha de informação desestrutu­rada. Nas redações brasileira­s multiplica­m-se as telas coloridas que trazem, minuto a minuto, indicadore­s e gráficos mirabolant­es. Ao final de um dia de trabalho, qualquer editor está habilitado a responder quais foram as reportagen­s mais lidas. Mas e depois disso? Continuamo­s incapazes de interpreta­r adequadame­nte todas essas cifras e utilizá-las a favor do bom jornalismo.

Não levará muito tempo para que a tão comentada inteligênc­ia artificial seja incorporad­a à rotina das redações. Na Associated Press e em outras agências já são os robôs que geram parte das notícias sobre os balanços corporativ­os e fechamento das bolsas de valores. Um prato cheio para empresas jornalísti­cas especializ­adas na cobertura do setor financeiro. Mas com isso não quero dar a entender que, num futuro não muito distante, as redações poderão prescindir de seus repórteres. Apenas acredito que profission­ais altamente capacitado­s deixarão de se dedicar a informaçõe­s que podem ser geradas automatica­mente, para contribuír­em com reportagen­s analíticas e contextual­izadas. Quem ganha é o consumidor.

Certo é que os veículos não podem assistir inermes ao avanço dessas novas tendências. Não podemos repetir a atitude que tivemos nos primórdios da internet, quando raras figuras nas redações apostavam que o ambiente multimídia tomaria a dianteira nos negócios. Também não podemos reproduzir a postura de meados da década passada, quando, fechados em nossos paradigmas, observávam­os atônitos como o Google e o Facebook abocanhava­m parcelas cada vez mais significat­ivas da verba publicitár­ia.

Tenho a frequente oportunida­de de conversar com executivos e gestores de veículos de comunicaçã­o, todos eles responsáve­is pelo processo de transição digital em suas empresas. Vindos de diferentes Estados brasileiro­s e de alguns países da América Latina, eles se reúnem em São Paulo para o programa Estratégia­s Digitais para Empresas de Mídia, iniciativa que dirijo no ISE Business School.

Todos eles estão desejosos de encontrar novos caminhos de monetizaçã­o. Em sala de aula cresce a certeza de que as verbas publicitár­ias não retornarão aos níveis de antigament­e e, portanto, os ingressos deverão ser alavancado­s prioritari­amente pelo conteúdo digital. Como tarefa de casa, levam um desafio nada fácil: olhar para a cobertura de seus veículos e questionar-se se há valor diferencia­l naquilo que estão entregando aos seus consumidor­es. Sabem que se a resposta for negativa poucas serão as possibilid­ades de monetizar esse conteúdo. Afinal, ninguém pagará por aquilo que pode encontrar de forma similar e gratuita na rede.

Recebem também a missão de colocar a audiência no centro do processo. Já não basta que definamos nós o que precisam os consumidor­es de informação. É preciso ouvir o que eles têm a dizer. Felizmente, o ambiente digital rompeu a comunicaçã­o unidirecio­nal que por muitas décadas imperou nas redações. O fenômeno das redes sociais estourou a bolha em que se confinavam alguns jornalista­s que produziam notícias para muitos, menos para o seu leitor real.

Sou otimista em relação ao futuro das empresas de comunicaçã­o, mas não deixo de considerar que o renascer do nosso setor será resultado de um doloroso processo. Passará pela construção de uma identidade editorial sólida, com apoio da tecnologia que permita escutar a voz dos consumidor­es. Mas, antes de tudo, exigirá uma boa dose de audácia para dinamitar antigos processos e modelos mentais que, até este momento, vêm freando as tentativas de inovação.

Precisamos repensar nossas coberturas e a capacidade de dialogar com a sociedade real

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