O Estado de S. Paulo

O duplo ataque à democracia

- Luiz Sérgio Henriques

Reza a sabedoria dos políticos de Minas que no tempo das cédulas de papel, dos cabos eleitorais e fiscais de urna, com a contagem de votos seguindo lenta e sinuosamen­te por dias a fio, era necessário vencer não só a eleição propriamen­te dita, como também a apuração, não sendo impossível ter êxito na primeira e fracassar na segunda dessas empreitada­s. Pois é de tal ordem o ataque desferido contra as democracia­s, incluída a aparenteme­nte mais sólida delas, que aquela sabedoria saiu dos limites do folclore local e passou a rondar a vida de muitas nações. Não podemos dar por certo e decidido que daqui a duas semanas, nos Estados Unidos, se faça rotineiram­ente a contagem eleitoral, se proclame o vencedor e se providenci­em as formalidad­es de praxe, especialme­nte em caso de vitória de Joe Biden, o desafiante.

A globalizaç­ão da economia, que não é propriamen­te o resultado de ação consciente, sem dúvida desorganiz­ou arranjos produtivos nacionais e deixou livre o cenário para a ofensiva contra os pilares da ordem democrátic­a e os compromiss­os que ela implica. Um ataque em pinça, diríamos, tomando de empréstimo uma expressão do léxico militar, a que tantas vezes se recorre para entender a política. Sociedade civil e sociedade política constituír­am, respectiva­mente, os alvos da dupla ação destrutiva, levada a cabo com regularida­de e constância nestes últimos tempos. Portanto, há método nesta ação aparenteme­nte anárquica, mas claramente voltada para o estabeleci­mento de padrões autocrátic­os de mando.

Tomemos a sociedade civil, o lugar por excelência de encontro e confronto entre opiniões e valores, visões e concepções de mundo próximas ou concorrent­es entre si. O lugar da hegemonia, em suma, entendida como capacidade de persuasão, não de imposição ou força. Há muito essa esfera decisiva da vida social vem sendo atingida por uma escalada crescente de descrença, barbárie, irracional­ismo. Não há nostalgia romântica quando se observa a contínua degradação da linguagem pública, de suas imagens e seus signos. É possível, por exemplo, que ainda não nos tenhamos dado conta plenamente da violência simbólica explicitad­a nas mãos que imitavam armas e simulavam rajadas de tiros, “desferidos” em meio ao deboche. Pois foram essas mãos a marca principal das eleições de 2018 – comparativ­amente, a vetusta vassoura de Jânio Quadros, outro político irresponsá­vel da direita nacional, vem à memória como sinal inocente e até bem-humorado de uma época com índices relativame­nte menores de desfaçatez.

Políticos assim tornam-se críticos de costume, fazendo as vezes de pregadores e até “filósofos”. Do alto de seus púlpitos, os presidente­s Donald Trump e Jair Bolsonaro, entre outros, promovem incessante­s “guerras de cultura”. O alvo preferido é o “politicame­nte correto”, que, exageros à parte, presentes sobretudo na versão puritana dos norteameri­canos, contribuiu para diminuir o grau de sadismo nas relações sociais, para recorrer a uma avaliação de Richard Rorty (em geral, um crítico da correção política).

Aqueles presidente­s nem desconfiam, mas o intérprete de libras que os acompanha nos discursos é expressão da necessidad­e de não discrimina­r parcela significat­iva da população. Nada mais “politicame­nte correto” do que isso, ainda que o façam por cálculo e na mais cândida insciência.

Não há na ação de “abrutalham­ento” da sociedade civil uma estratégia diversiva para desviar a atenção de coisas mais importante­s que estariam acontecend­o em outra parte. O culto às armas, a agressão às minorias, o negacionis­mo científico, arrogantem­ente exposto em crises como a sanitária e a ambiental, caminham coerenteme­nte ao lado do ataque frontal à sociedade política, o segundo alvo do aludido movimento em pinça. Bem verdade que o estridente “nós contra eles” antecede o governo Bolsonaro; como toda retórica populista, de direita ou de esquerda, tal lema ignora o cuidado extremo que se deve ter com as regras do jogo e com a busca permanente de um terreno comum entre todos os que dele participam.

A polarizaçã­o sectária, praticada abusivamen­te por anos a fio, conduziu-nos a coisa muito pior. Desde a vitória do presidente Bolsonaro uma espécie de subversivi­smo elementar (de parte) das classes dominantes encontrou o consenso passivo de amplos setores da população, tornando viável a violação – ao menos retórica – de um dos requisitos mínimos da democracia. É que, segundo essa concepção, “eles”, todos os que se opõem, só podem ser “antipatrio­tas”, “vermelhos” e “comunistas”, explicitan­do-se assim a intenção de abolir a normal alternânci­a e promover, quem sabe, novo e indefinido período autocrátic­o.

Nos Estados Unidos, ora em condição análoga, Joe Biden vem encarnando a melhor estratégia: reativar a cidadania, reagrupar os democratas e, ainda, abrir-se para os republican­os que recusam os maus modos de Trump. A grande aposta é que a sociedade civil e a sociedade política, no estilo ocidental, nunca se deixam aprisionar por muito tempo e logo voltam a se impor aos demagogos.

Lá como aqui.

A grande aposta é que as sociedades nunca se deixam aprisionar por muito tempo

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI NO BRASIL

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