Correio da Manha

Agora somos japoneses

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Foi com horror que li há anos uma especialis­ta em etiqueta dizer que não tinha paciência para se descalçar nas casas dos outros. “Nem que fosse no Japão”, bufava. Pois agora a pobre senhora deve estar mesmo furibunda, porque virámos todos japoneses.

Cumpriment­amo-nos à distância, usamos máscara na rua, lavamos regularmen­te as mãos, deixamos os sapatos à porta. E fazemo-lo pelas melhores razões, as japonesas: não tanto para nos protegermo­s a nós como para proteger os outros.

Tenho uma afeição enorme pelo Japão e, felizmente, não me faltaram oportunida­des de lá ir. E (isto soa sempre mal, não sei porquê) eles também gostam de nós. Já escrevi dois livros passados no Japão; fui coautor de uma manga (banda desenhada ao estilo japonês) sobre o tratado de amizade faz 160 anos; o ano passado saiu lá uma antologia do conto português que tive a honra de coeditar.

A minha infância, aliás, foi passada no Japão. Enfim, na Calçada de Sant’Ana, mas a mim parecia o Japão. Brincávamo­s na rua, porque os carros sabiam que estávamos lá; dando voltas a Portugal em bicicleta nas bordas dos passeios, andando em carrinhos de rolimã, jogando com uma bola feita de jornais embrulhado­s dentro de uma meia.

E (isto sim, é mesmo japonês) aos seis anos íamos sozinhos para a escola. Cidade fora. É que nós éramos prioridade, não os carros. No Japão, as passadeira­s facilitam a vida aos peões, não os obrigam a manobras militares que podem (pelo menos parece) levar uma eternidade.

Em Lisboa, atravessar a pé o cruzamento da Avenida de Roma com a Estados Unidos da América é um paraíso e um inferno. Paraíso para quem vai de carro, inferno para quem quer ir às compras, ao café, à farmácia. Em Tóquio quando o sinal está verde para os peões, até na diagonal podemos atravessar.

No Japão sempre foi fundamenta­l o respeito pelo espaço público. É uma negociação razoável, sem gritaria, sem “Anda lá com essa ***” ou os famigerado­s “Estou a trabalhar”.

As sazonais ameaças naturais (tufões, tsunamis, terramotos, o Godzilla) fizeram com que a cultura japonesa ganhasse um cabedal social. Lá, o civismo não é só boa prática, é uma questão de sobrevivên­cia.

E nós? Como era previsível, vem aí borrasca. Sejamos então, até para evitar novo confinamen­to, um bocadinho japoneses.

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