“Alguém nesta sala vai viver trezentos anos”
O Festival Literário Internacional reuniu centenas de autores, investigadores e criadores em Óbidos. Termina hoje, após uma maratona de eventos, conversas e encontros entre leitores
JOÃO CÉU E SILVA Quando daqui a horas o elefante Salomão sair porta fora da vila de Óbidos será declarado o fim da primeira edição do Folio, o Festival Literário Internacional. Na poeira levantada pela personagem do livro de José Saramago vão ficar no ar 11 dias de ideias, livros e canções a aguardar pela próxima edição, que os organizadores garantem ser mais curta e do que esta.
Afinal, é raro ver-se uma “coisa” tão grande nas letras nacionais, em que tudo acontece ao mesmo tempo e em lugares mais ou menos inesperados, como só é possível no cenário medieval de Óbidos, onde ao andar-se pelas ruas empedradas da vila dá-se de caras com o autor Nelson Motta a lamber um gelado enquanto escolhe um souvenir; pode beber-se uma ginjinha com a fadista Ana Moura; perguntar ao pouco sorridente Ruy Castro como é fazer das melhores biografias do mundo; ver Pacheco Pereira sempre ao telefone... E os leitores gostam disto, mesmo que não se consiga em muitas das vezes saber quem foi lá por causa das palavras ou em exploração turística, tal é o cruzamento de visitantes.
Fazer o balanço do Folio é difícil, até porque é preciso aguardar pelos números da contabilidade para saber da sua razoabilidade financeira e de participação. Mesmo que fazer contas seja desnecessário para o público que lá foi ouvir, ler e ver; ou para o facto de ter havido sessões matinais apenas com duas dúzias de espectadores. Fracassos de público que têm um contraste violento com as centenas de pessoas que se deslocavam à Tenda dos Autores para assistir ao confronto de opiniões como os que puseram frente a frente o escritor moçambicano Mia Couto e o neurobiólogo Sidarta Ribeiro; os dois Prémio Camões, Hélia Correia e Eduardo Lourenço, ou um dos principais autores espanhóis, Javier Cercas, a criticar a mistificação histórica dos compatriotas e dos atores da sociedade espanhola.
No primeiro caso, o leitor surpreender-se-ia com o rosto assustado de Mia Couto devido ao rumo que a conversa estava a tomar, é que o moderador José Eduardo Agualusa questionou Sidarta Ribeiro A Livraria do Mercado é um dos espaços mais curiosos da dezena de livrarias que fazem cada vez mais de Óbidos uma vila literária. Situada na rua principal, com estantes feitas de caixotes de fruta, nela o leitor tanto pode encontrar um livro do desaparecido fundo de catálogo como comprar um cone com frutos exóticos sobre os efeitos da marijuana e do canábis na criação literária, tendo a resposta do neurobiólogo ido no sentido positivo. Vai daí pergunta Agualusa a Mia Couto: “Foi assim que criaste o teu universo mágico?”, ao que o escritor explicou que lhe bastava um café para sentir efeitos e não precisava de alucinogénios. Mas o que mais espantou o leitor foi a resposta do neurobiólogo à pergunta sobre se era possível a um computador diferenciar a escrita realizada sem efeito de substâncias e a feita após consumo de drogas. “Sim”, disse Sidarta, acrescentando que o efeito do ecstasy ainda era mais fácil de detetar. Sidarta Ribeiro não deixou de responder a outras questões, como a da substituição de partes do corpo humano por peças, avisando que apenas o cérebro será insubstituível. Ou seja, disse, “tenho a certeza de que há alguém nesta sala que vai viver trezentos anos”. Quando Mia Couto refere que em Moçambique as palavras sonhar, imaginar e voar eram a mesma, Sidarta divagou sobre os monges tibetanos e o sonho lúcido, a origem da consciência humana e da necessidade humana da fusão com a natureza.
No segundo caso, o debate organizou-se em torno da construção da Europa através da literatura. Para Eduardo Lourenço, estamos perante uma “Europa desencantada”, que adormeceu “entre a Segunda Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim”, atirando para cima da mesa que o projeto da União Europeia só vingará quando a “Rússia for incorporada a esta Europa”. Por seu lado, Hélia Correia elegeu o “tesouro literário da Europa” como um objetivo a defender por todo o continente e, ressaltando o aleatório dos acontecimentos que fazem a história, garantiu que “não podendo a Grécia Antiga ser ressuscitada”, essa memória apenas serve para “a exaltação dos seus valores” num mundo em que “a democracia não existe” e o “boletim de voto é uma coisa holográfica”.
No terceiro caso, a presença do autor espanhol Javier Cercas, a propósito da reflexão sobre o lugar do romance na perceção atual da sociedade, também entusiasmou a Tenda. O novo livro de Cercas intitula-se O Impostor e motivou sérias disputas no seu país pois retra-