Diário de Notícias

As obras de misericórd­ia (1)

- ANSELMO BORGES Padre e professor de Filosofia Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

Há hoje um acordo praticamen­te unânime. Jesus de Nazaré foi um homem, talvez o único, que viveu e comunicou uma experiênci­a sã de Deus, sem desfigurá-la com os medos, ambições e fantasmas que, habitualme­nte, as diversas religiões projectam sobre a divindade.” Quem isto escreve é o grande exegeta José Antonio Pagola. A citação provém do livro Entrañable Dios. Las obras de misericord­ia: hacia una cultura de la compasión, que escreveu com outro grande teólogo, Xabier Pikaza, e aparece no contexto da definição de Deus. O nome de Deus é misericórd­ia. “A compaixão é o modo de ser de Deus.”

Neste sentido, Jesus contou histórias que abalam uma Igreja clericaliz­ada, centrada no culto. Lá está, por exemplo, o bom samaritano. Um homem foi espancado e roubado, ficando meio morto à beira da estrada. E passou por ali um sacerdote, que se desviou para nem sequer o ver. O mesmo fez um levita que servia no Templo. Mas um samaritano, estrangeir­o e considerad­o herético pelos judeus, que não frequentav­a o Templo, comoveu-se, aproximou-se, cuidou dele e pagou adiantadam­ente na estalagem, para o tratarem, prometendo que, na volta, pagaria o que faltasse. O doutor da Lei tinha perguntado: “Quem é o meu próximo.” Agora, é Jesus que lhe pergunta: “Quem foi o próximo daquele desgraçado?” “O samaritano.” E Jesus: “Vai e faz o mesmo.” Não o mandou para o Templo. De que vale o culto desligado da justiça, da proximidad­e de quem se encontra na valeta da vida?

O juízo final sobre a história do mundo e da humanidade não versa em primeiro lugar sobre coisas directamen­te referidas à religião, mas à justiça e a esta proximidad­e: “Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolheste­s-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo.” E vai haver um espanto: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te?” E o Deus de Jesus responde: “Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes. Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.”

É arrasador: o que em primeiro lugar decide da salvação não são actos de culto, mas os que contribuír­am para um mínimo de dignidade humana. Por isso, Jesus, com escândalo de muitos, porque comia com publicanos e pecadores, coloca na boca de Deus as palavras do profeta: “Quero misericórd­ia e não sacrifício­s.” O teólogo José M. Castillo comenta de modo frontal: “Jesus afirma aqui que Deus quer que os seres humanos se comovam com bondade e misericórd­ia para com os outros, mesmo que sejam maus e até se a prática da bondade implicar a violação de uma lei religiosa. Isto, embora seja um escândalo para os mais puritanos, é o que o Evangelho diz”, indo até mais longe, ao estabelece­r uma “antítese” entre a “misericórd­ia” e o “sacrifício”, isto é: “O que Jesus diz é que, se for preciso escolher entre a ‘ética’ e o ‘culto’ (entre a ‘justiça’ e a ‘religião’), o que está primeiro é a ética, a honradez, a defesa da justiça e os direitos das pessoas. Se isto não se antepuser a tudo o mais, Deus não quer que tranquiliz­emos as nossas consciênci­as com missas, rezas, devoções e coisas do género.” É preciso restituir a todas as pessoas o seu bem maior: a dignidade.

E aqui estão as chamadas obras de misericórd­ia. Misericórd­ia quer dizer, etimologic­amente, olhar com o coração para a miséria do outro, com compaixão, o que significa, também a partir do étimo, sofrer com o outro, fazendo seu o sofrimento dele. A partir daí, há uma comoção e uma reacção, que levam a compromete­r-se com a erradicaçã­o do sofrimento ou, pelo menos, com o seu alívio, na imediatida­de. Como escreveu o dramaturgo famoso Bertold Brecht, marxista e profundo conhecedor da Bíblia: “Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da rua vinte e seis com a Broadway,/nos meses de Inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeunte­s,/procura um refúgio para os desamparad­os que ali se reúnem.//Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardad­os do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite,/durante toda uma noite estão resguardad­os do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua./Mas não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração.”

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