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Corrigir as assimetrias das cidades é o passo seguinte na pós-pandemia
—ANTÓNIO PEDRO PEREIRA e ANA MEIRELES
Se a mobilidade é o tema fixo do Portugal Mobi Summit, a covid-19 foi a variável que entrou nesta terceira edição para dar novas pistas sobre o rumo das cidades do futuro. Como mudar o planeamento na era da pandemia ou até mesmo como desenhar de raiz ecossistemas seguros para peões e ciclistas foram dois painéis distintos desta cimeira, que juntaram especialistas estrangeiros e nacionais a olhar para quais vão ser os passos seguintes dos centros urbanos.
Em Cascais, em Lisboa ou em Barcelona, a pandemia foi como uma “lupa a amplificar as fragilidades sociais, económicas e ambientais”, avisou Javier Ayala, arquiteto-chefe do município de Barcelona. A covid-19 alastrou-se pelo mundo sem olhar a fronteiras, mas os impactos, esses, foram maiores para as populações com rendimentos mais baixos, adverte, por seu tur
“Houve um ataque à saúde pública e um ataque à economia nacional e local, obrigando os países a alterar as prioridades.” Muitas convulsões ao mesmo tempo que trouxeram incertezas, mas também oportunidades para equilibrar as assimetrias acentuadas com a pandemia: “O tema work from Portugal devia ser uma aposta do governo”, propõe o especialista da consultora
Planear as cidades não é tarefa de urbanistas enfiados nos gabinetes a decidir como é que os outros devem viver as cidades. Desenhar bairros, determinar a localização dos transportes, dos serviços públicos, do comércio, das praças ou dos espaços verdes só resulta se forem projetados em conjunto com as comunidades. “Os especialistas têm de descer à terra e envolverem-se nos problemas e necessidades dos seus habitantes”, adverte Nidhi Gulati, diretora de programas da Projects for Public Spaces, uma ONG que, desde 1975, apoia bairros de Nova Iorque no planeamento de espaços sustentáveis.
Cidades inclusivas é o que Gulati defende para evitar barris de pólvora prestes a rebentar nas áreas metropolitanas. Sabendo que origens sociais, económicas, raciais e até de género interferem na vivência dos espaços públicos, a alternativa é construir centros urbanos capazes de integrar diferentes backgrounds e proporcionar bem-estar entre as comunidades: “Precisamos de aldeias nas nossas cidades”, conclui a arquiteta indiana. Reduzir a escala é o caminho e isso passa por lembrar que, mais do que viver num centro urbano, importa “habitar num centro humano” com comércio, serviços ou lugares de convívio a não mais do que 10-15 minutos de distância: “Quando começarmos a construir essas aldeias, teremos de pensar em toda a gente.” E toda a gente inclui os marginalizados, relembra Nidhi Gulati.
Transportes sexistas
A mobilidade como está desenhada nem sequer tem em conta as necessidades das mulheres, diz a diretora da Projects for Public Spaces. Nos EUA, por exemplo, os transportes públicos vão do centro ao subúrbio, “servindo uma mobilidade tipicamente masculina”. Mas o estilo de vida da mulher típica é tudo menos linear. Ela tem de deixar os filhos na escola, no ponto A, fazer compras, no ponto B, ir para o trabalho, no ponto C, ou correr para a lavandaria à hora do almoço, no ponto D. “Não há sistema de transporte público preparado para estas necessidades”, diz. E isto sem contar que os sistemas de segurança do automóvel estão pensados para o corpo masculino, correndo elas mais riscos do que eles em caso de acidente: “A piada de que as mulheres são aselhas ao volante pode ter, afinal, motivos mais trágicos do que cómicos.”
Toda a mobilidade precisa de ser repensada e nada mais atual do que a covid-19 para aproveitar a oportunidade. “A forma como se viaja vai ter de mudar para ser possível proteger as populações de outras pandemias que, com as alterações climáticas, vão ser mais frequentes.” Viajar menos, percorrer distâncias curtas e adotar transportes sustentáveis terão de entrar no novo paradigma, defende a arquiteta.
E afastar o automóvel das cidades é o que “precisamos fazer já” antes que todos regressem ao “velho normal”. Essa é a via para as ruas voltarem à função para a qual foram feitas, diz Gulati, afastando-se do centro do palco para mostrar as imagens selecionadas para concluir a apresentação. São fotos de ruas com crianças a caminhar para as escolas, idosos a dormitar à porta das lojas, miúdos a jogar basquetebol, cães a aproveitar o calor do fim da tarde, universitários a beber um copo e gente a regressar a casa: “As ruas são para as pessoas”, remata a arquiteta.