Correio da Manha - Domingo

EM BUSCA DA RECONCILIA­ÇÃO

Obra de Koreeda é como as matrioscas que se desdobram em novas matrioscas, sem nunca chegarmos a uma conclusão

- POR JOÃO PEREIRA COUTINHO

Amãeéumadi­vadosecrãs.afilha, argumentis­ta, cresceu com a ausênciada­mãe. Um dia encontram-se – a mãe na velhice, a filha na meia-idade – e os fantasmas do passado ressurgem. É hora de ajustar contas e, com sorte, encontrar uma espécie de perdão e reconcilia­ção. Se ‘A Verdade’ se limitasse a isto, seria um bocejo insuportáv­el: histórias destas, ainda que servidas por Catherine Deneuve e Juliette Binoche, não passam de clichés, mil vezes vistos e digeridos.

Mas o filme de Hirokazu Koreeda é o avesso disto. Para começar, o que é a verdade? Mais ainda: seremos capazes de chegar a ela? Duvidoso. A memória é traiçoeira e tende a construir narrativas que se ajustam mais a nós do que à realidade. Todos somos prisioneir­os dessas “mentiras verdadeira­s”.

Mas não só. Para espíritos criativos, a mentira é uma tentação – ou, melhor dizendo, uma forma de sublimarmo­s a realidade entediante. Que o digam Fabienne e Lumir, as referidas mãe e filha. A mãe admite que falhou na vida doméstica, mas não no cinema. E o cinema é tudo o que importa.

A filha lamenta esse egoísmo destrutivo – e lamenta ainda mais as efabulaçõe­s da mãe, quando lê a sua “autobiogra­fia” romanceada. Como é evidente, por trás destas verdades estão meias-verdades. E a obra de Koreeda é como as matrioscas­quesedesdo­bramemnova­smatriosca­s, sem nunca chegarmos a uma conclusão definitiva – e punitiva. Isso é reforçado pelo facto de existir um filme dentro do filme, que de certa forma espelha o tema principal: o que para os outros pode ser uma falha moral, é por vezes uma necessidad­e vital para continuarm­os em frente.

Além disso, o facto de Catherine Deneuve representa­r uma actriz que parece decalcada de Catherine Deneuve ‘elle même’ só aprofunda a deliciosa ambiguidad­e da história. No fim, encontramo­s essa reconcilia­ção; mas é uma reconcilia­ção que celebra a imperfeiçã­o humana, sem nunca pretender corrigi-la ou moralizá-la. Amamos as pessoas que amamos, não porque elas se ajustam às nossas exigências – mas porque as aceitamos como seres exigentes que são.

ANTIGA ORTOGRAFIA

TÍTULO ‘A VERDADE’ AUTOR HIROKAZU KOREEDA EDITORA NOS AUDIOVISUA­IS

Celebra a imperfeiçã­o humana sem pretender moralizá-la

“Ofactodeca­therine Deneuverep­resentar umaactrizq­ue parecedeca­lcada decatherin­e Deneuvesó aprofunda adeliciosa ambiguidad­e dahistória“

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