EM BUSCA DA RECONCILIAÇÃO
Obra de Koreeda é como as matrioscas que se desdobram em novas matrioscas, sem nunca chegarmos a uma conclusão
Amãeéumadivadosecrãs.afilha, argumentista, cresceu com a ausênciadamãe. Um dia encontram-se – a mãe na velhice, a filha na meia-idade – e os fantasmas do passado ressurgem. É hora de ajustar contas e, com sorte, encontrar uma espécie de perdão e reconciliação. Se ‘A Verdade’ se limitasse a isto, seria um bocejo insuportável: histórias destas, ainda que servidas por Catherine Deneuve e Juliette Binoche, não passam de clichés, mil vezes vistos e digeridos.
Mas o filme de Hirokazu Koreeda é o avesso disto. Para começar, o que é a verdade? Mais ainda: seremos capazes de chegar a ela? Duvidoso. A memória é traiçoeira e tende a construir narrativas que se ajustam mais a nós do que à realidade. Todos somos prisioneiros dessas “mentiras verdadeiras”.
Mas não só. Para espíritos criativos, a mentira é uma tentação – ou, melhor dizendo, uma forma de sublimarmos a realidade entediante. Que o digam Fabienne e Lumir, as referidas mãe e filha. A mãe admite que falhou na vida doméstica, mas não no cinema. E o cinema é tudo o que importa.
A filha lamenta esse egoísmo destrutivo – e lamenta ainda mais as efabulações da mãe, quando lê a sua “autobiografia” romanceada. Como é evidente, por trás destas verdades estão meias-verdades. E a obra de Koreeda é como as matrioscasquesedesdobramemnovasmatrioscas, sem nunca chegarmos a uma conclusão definitiva – e punitiva. Isso é reforçado pelo facto de existir um filme dentro do filme, que de certa forma espelha o tema principal: o que para os outros pode ser uma falha moral, é por vezes uma necessidade vital para continuarmos em frente.
Além disso, o facto de Catherine Deneuve representar uma actriz que parece decalcada de Catherine Deneuve ‘elle même’ só aprofunda a deliciosa ambiguidade da história. No fim, encontramos essa reconciliação; mas é uma reconciliação que celebra a imperfeição humana, sem nunca pretender corrigi-la ou moralizá-la. Amamos as pessoas que amamos, não porque elas se ajustam às nossas exigências – mas porque as aceitamos como seres exigentes que são.
ANTIGA ORTOGRAFIA
TÍTULO ‘A VERDADE’ AUTOR HIROKAZU KOREEDA EDITORA NOS AUDIOVISUAIS
Celebra a imperfeição humana sem pretender moralizá-la
“Ofactodecatherine Deneuverepresentar umaactrizque parecedecalcada decatherine Deneuvesó aprofunda adeliciosa ambiguidade dahistória“