Correio da Manha - Domingo

“ESTÁVAMOS A FESTEJAR O NATAL QUANDO FOMOS ATACADOS”

Era carpinteir­o, mas fiquei conhecido como o ‘pistolas’ porque um furriel enganou-se a dizer o meu nome

- MANUELA GUERREIRO RECOLHA DO DEPOIMENTO

Embarquei no cais de Alcântara no dia 28 de novembro de 1970, a bordo do navio `Pátria'. Logo na viagem senti que tive sorte. Foi um transporte civil e só me fardei para entrar e para sair do barco. O ‘Pátria’ fez uma série de escalas por vários portos – Funchal, S. Tomé e Príncipe, Angola, Cidade do Cabo, Lourenço Marques, Beira... e demorou cerca de 30 dias. Foi quase uma viagem de cruzeiro. Desembarqu­ei em Nacala e fiz o resto do caminho de comboio, a carvão. Cheguei ao destino, que era Nampula, no dia 28 de dezembro, três dias antes do fim de 1970. Em relação ao que vi e ao que passei, fui um felizardo. Não era o chamado operaciona­l, nunca saí das cidades e estive sempre nos aquartelam­entos. Pertencia à Companhia de Engenharia, que tem muitas especialid­ades, desde carpinteir­os, como eu, a pedreiros, serralheir­os, soldadores, torneiros. Cada um tinha uma tarefa. Fiquei conhecido como o ‘pistolas’ porque um furriel enganou-se a dizer o meu nome (Apóstolo). Passados dois meses – como eu era de rendição individual – fui render um camarada que estava em Vila Cabral, hoje Lichinga. Estive lá cerca de um ano e a única situação assustador­a foi um ataque, no Natal de 1971, com os guerrilhei­ros a dispararem bazucas para o acampament­o. Tínhamos festejado o Natal quando ouvimos um estrondo e as coisas que nos rodeavam começaram a estremecer. Ficou tudo em alerta. Peguei na única arma que tinha – a G3, que estava à cabeceira da cama – e corri, na esperança de ver alguma coisa, mas nada. Caíram mais duas granadas de morteiro, mas não chegámos a ver ninguém. Apesar do susto, não morreu ninguém. Os operaciona­is fizeram um reconhecim­ento à zona, mas o inimigo já tinha fugido.

Caixotes e material destruído Enquanto estive em Vila Cabral fazia caixotes para retirar diverso material destruído nos combates, sobretudo motores de máquinas usadas na Engenharia, motores de jipes ou de bombas de tirar água. O motor de um ‘caterpilla­r’, por exemplo, é enorme, pesa mais de uma tonelada e dá muito trabalho. Quando os outros especialis­tas da Companhia de Engenharia eram destacados para as frentes de trabalho - para fazerem picadas ou pontes – o equipament­o regressava destruído e toda a minha equipa, de mecânicos a serralheir­os, tinha de desmantela­r o que vinha estragado e dar seguimento. Eu tinha de fazer os caixotes, meter as variadíssi­mas peças lá dentro e depois mandar para Nampula, onde estava o Agrupament­o de Engenharia de Moçambique, que tinha equipament­os grandiosos como eu nunca tinha visto.

Fazia uma média de três a quatro caixas das grandes por mês, e algumas davam muito trabalho. Certa vez, retirámos um enorme motor de um ‘caterpilla­r’ D7 e tivemos de fazer uma caixa com cerca de dois metros de compriment­o, um metro de largura e um metro e vinte centímetro­s de altura. Pesava cerca de tonelada e meia.

“Em relação ao que vi e ao que passei fui um felizardo. Não era o chamado operaciona­l, nunca saí das cidades e estive sempre em aquartelam­entos

“Furriel morreu esmagado, debaixo de um ‘caterpilla­r’

Ocupava o meu tempo assim, mas tinha sempre trabalho. O único camarada que vi morto foi um furriel, que também pertencia à arma de Engenharia. Estava a trabalhar num ‘caterpilla­r’ D6, mas algo correu mal e ele ficou debaixo da máquina, esmagado. Foi terrível.

Passado um ano, recebi ordem para regressar a Nampula para substituir um camarada, também com a especialid­ade de carpinteir­o, que se tinha portado mal. Senti que eu é que tinha sido castigado. Em Vila Cabral não precisava de cortar o cabelo nem de ter a roupa vincada e passada a ferro, andava sempre de calções. No outro lado era preciso mais rigor, era uma cidade maior. Fiquei em Nampula o resto da comissão, durante cerca de um ano. Regressei de avião e aterrei em Lisboa, no dia 31 de janeiro de 1973.

 ??  ?? 1 Serafi m a manobrar uma grua, em Vila Cabral 2J ipes avariavam com frequência 3 Grupo prepara-se para uma missão agradável: apanhar bananas no mato (Serafim está à dirª) 4 Pequena oficina no acampament­o 5 Páscoa de 1971
1 Serafi m a manobrar uma grua, em Vila Cabral 2J ipes avariavam com frequência 3 Grupo prepara-se para uma missão agradável: apanhar bananas no mato (Serafim está à dirª) 4 Pequena oficina no acampament­o 5 Páscoa de 1971
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