A revolta das mulheres de Beja por tomarem banho vestidas
Há quase seis décadas, as mulheres resistiram aos condicionalismos impostos pelo antigo regime e a “certos conceitos de pudor” e conseguiram que fosse feita a mais bela piscina do Alentejo
No dia 30 de Março de 1962, um grupo de 114 mulheres de Beja conseguiu que fosse publicado nas páginas do então Diário do Alentejo (DA) um manifesto arriscado para a época. Reclamavam, com base num léxico audacioso, a construção de uma piscina. A audácia foi coroada de sucesso e, hoje, aquela que foi considerada a mais bela da região e que se tornou um símbolo de um inédito movimento feminista está em obras.
Mas que manifesto foi esse que conseguiu bulir com a letargia e o medo que manietava a comunidade, e num contexto em que a palavra feminismo ainda era desconhecida para a esmagadora maioria dos cidadãos ou era evitada pelos mais esclarecidos?
Num tempo em que era proibido reivindicar, a comunidade alentejana desencadeou um forte movimento popular e o diário regional revelou-se um veículo importante na mobilização das pessoas para materializar a construção do equipamento que permitisse, aos cidadãos “esbraseados, um refrigério para a soalheira dos dias estivais” quando o Alentejo interior só tinha acesso à água que lhe vinha do céu.
O projecto da piscina municipal foi apresentado como um meio para alcançar a “emancipação social na medida em que a mulher de hoje em nada se parece com as nossas avós”, acentuava-se no teor do manifesto. Antevendo a pequena revolução que era previsível no comportamento das mulheres de Beja, estas disseram à comunidade que “a evolução dos tempos transforma usos e costumes, vestuário e penteados e até mesmo o conceito moral”. Por conseguinte, a mulher tinha direito pleno “aos benefícios dos banhos de sol”. Mas, antes, importava que fossem transformados “certos conceitos de moral e de pudor” que deixassem de obrigar a mulher a “tomar banho completamente vestida”. Se assim não fosse, “como poderia actuar o sol sobre a epiderme, para que esta recolhesse a acção benéfica dos seus raios?”, perguntavam.
Conscientes de que o mundo é composto de mudança, questionavam o meio onde viviam, por estar “menos habituado que outros à transformação operada na sociedade, de modo mais acelerado”. E acalentavam a esperança em que a comunidade “não deixaria de aceitar os factos, quando são o resultado de espíritos esclarecidos”. Iniciava-se a Primavera de 1962.
A luta destas mulheres não foi inglória e, no dia 15 de Agosto de 1966, o chefe do Estado Américo Tomás inaugurava a piscina de Beja, no âmbito do 40.º aniversário da Revolução Nacional do Estado Novo.
Um movimento ousado
Mas o que importa realçar na dinâmica criada pelo manifesto apresentado é a ousadia do movimento popular que se gerou e em que as mulheres tiveram um papel primordial numa época e num contexto que dificilmente se poderia admitir o direito a reclamar um equipamento colectivo destinado, em primeiro lugar, “às populações de mais fracos recursos” que não tinham condições económicas para frequentar as praias do litoral alentejano.
O Diário do Alentejo foi o veículo dinamizador do movimento pela construção da piscina de Beja. Choviam as cartas ao director a expressar as razões que justificavam a obra, no ponto de vista de cada um.
Num editorial datado de 4 de Outubro de 1962, este órgão de informação regional assumia- se como “a voz que representa muitas vozes e que merece ser ouvida”. A cidade já debatia, há vários anos, a construção da piscina sem que lhe
No manifesto dizia-se que a mulher tinha direito pleno “aos benefícios dos banhos de sol”. Mas importava mudar “certos conceitos de pudor”
fosse dada qualquer resposta. O jornal realçava “a indiferença” que a ideia tinha merecido “das esferas que poderiam agir no sentido da sua concretização”, apesar da insistência com que o tema era focado nas páginas do então diário (hoje é semanário).
Um leitor situava noutros moldes o problema, realçando o facto de Beja se encontrar “a 100 quilómetros de qualquer praia do litoral e sujeita a temperaturas que no verão oscilam entre os 35 e os 40 graus à sombra”. A situação seria tão constrangedora que os estrangeiros que passavam pela cidade eram “forçados a deambular pelas ruas com fatos próprios mais para a praia do que para usar num centro urbano, de hábitos pacatos e mais ou menos recatados” como era então a comunidade de Beja.
Outros argumentos iam sendo esgrimidos a cada edição do jornal. Cerca de dois terços da população interior “não têm facilidade de se deslocar ao litoral”. Por outro lado,
Beja era então, para além de Setúbal, a “única cidade” entre Lisboa e Sevilha e Lisboa e Algarve, um posicionamento geográfico que merecia deferências.
Em 1963, a praia de Beja era nas margens do Guadiana, a quase 30 quilómetros de distância. Mas os bilhetes de autocarro ou de comboio para lá chegar tinham um custo proibitivo, que impedia a maioria dos bejenses de a poder frequentar.
José Moedas, pai do ex-comissário da União Europeia para a Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas, escrevia nas páginas do DA, onde era jornalista, que a ideia da piscina em Beja estava a ganhar “fortes raízes” e anunciava que ia ser presente à câmara uma carta apoiada em 1251 assinaturas de pessoas de todas as categorias sociais, “sem distinção de sexo, idades, categoria social ou mental, credos políticos ou religiosos”, a pedir a construção de uma piscina.
Numa cidade onde o clima é bastante rigoroso no Verão, as ruas nos dias de canícula tinham um “aspecto de abandono, de autêntico deserto”, resumia o cidadão João Paulo Lopes numa carta endereçada ao presidente da Câmara de Beja.
E a obra fez-se
Em 22 de Janeiro de 1965, o presidente da autarquia, Joaquim Alexandre Black de Vilhena Freire de Andrade, pressionado pelos acontecimentos, escreve uma carta ao “Ministério das Obras Públicas, jornais, representantes das colectividades, grupos desportivos” a reconhecer “em absoluto” a necessidade de se construir a piscina. Em simultâneo, escreve também ao Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo, sob a alçada da Presidência do Conselho de Ministros, a reclamar a necessidade de ajuda para a sua construção.
O movimento gerou frutos e o equipamento avançou. O financiamento para a sua construção veio de subsídios provenientes de várias instituições públicas. Quando arrancaram as terraplenagens, Carolina Almodôvar, proprietária de uma mais abastadas casas da região, que dispunha de um parque de máquinas sem equivalente no Sul do país, facultou parte delas para as obras da piscina sem cobrar um tostão.
Se financeiramente o projecto decorria sem grandes sobressaltos, já a mão-de-obra escasseava. Assistia-se ao grande êxodo de alentejanos para a área metropolitana de Lisboa, para o Algarve e para o estrangeiro. Receosa dos atrasos na obra, a Câmara de Beja faz publicar no Diário do Alentejo este anúncio: “Pedreiros. Para trabalharem mais de oito horas por dia. Precisam-se na Piscina. Damos abrigo se necessário. Bons salários.”
O anteprojecto aprovado no final
de 1965 previa um investimento na construção da piscina de 4000 contos (20.000 euros). Mas as “derrapagens” aumentaram e o seu custo final fi cou- se pelos 6150 contos (30.750 euros). Decorridos sete meses do início das obras, estas foram concluídas a tempo da sua inauguração integrar o 40.º aniversário da revolução do Estado Novo.
Quase 55 anos depois, o actual executivo socialista da Câmara de Beja avança com um projecto para “reabilitar e ampliar o edifício dos balneários da piscina municipal, um restaurante e um equipamento semelhante a ginásio”. As obras iniciaram- se em Julho passado. A empreitada está orçada em mais de um milhão e novecentos mil euros e tem um prazo de execução de 12 meses.
O presidente da Câmara de Beja, Paulo Arsénio, explicou ao PÚBLICO que a intervenção na piscina municipal se vai traduzir numa “melhoria muito substancial dos balneários” que se encontravam num estado de degradação que “não dignificavam” uma estrutura que em tempos foi considerada a “mais bela piscina do Alentejo”.
Hoje, todas as sedes de concelho da região do Alentejo dispõem de uma piscina municipal descoberta e uma grande parte dos municípios tem ainda uma piscina coberta com água aquecida.
O projecto de reabilitação da piscina de Beja está a ser financiado
através do Feder (1250 milhões de euros) e de um empréstimo obtido junto do Banco Europeu de Investimento.
A mulher de hoje em nada se parece com as nossas avós
Manifesto assinado por 114 mulheres em 1962