Bolivianos escolhem um Presidente para tentar fechar o ano de todas as crises
Nas primeiras eleições sem Evo Morales em mais de uma década, o ódio ou a devoção ao ex-Presidente marcam o ambiente político
Os bolivianos esperam que as eleições presidenciais de hoje ponham fim a um ano de convulsão política, cheio de reviravoltas e que acentuou a polarização no país. A escolha recai entre um regresso aos tempos de Evo Morales, embora sem o primeiro Presidente indígena, ou a aposta num Governo conservador que irá necessitar do apoio da extrema-direita.
A Bolívia passou por mais mudanças no último ano do que na década anterior e, no entanto, a política nacional continua a girar em torno da figura de Morales, exilado desde o fim do ano passado na Argentina e impedido de se recandidatar. As eleições deste domingo, adiadas por três vezes por causa da pandemia da covid-19, acontecem praticamente um ano depois da votação que desencadeou uma série de acontecimentos que muito poucos poderiam ter previsto e que culminaram com a demissão forçada de Morales.
As narrativas divergentes sobre os acontecimentos do último ano digladiam-se também nas urnas. À esquerda, os apoiantes de Morales e do seu Movimento para o Socialismo (MAS) denunciam um “golpe de Estado” operado pelos sectores reaccionários e racistas da sociedade boliviana, com o beneplácito da Organização de Estados Americanos (OEA); para a direita, o afastamento de Morales foi o desfecho justo para um “ditador” que se queria eternizar no poder e agora esta é a oportunidade para a viragem de uma nova página.
No entanto, é bastante questionável que o clima de confronto e, frequentemente, de violência entre grupos políticos rivais dê lugar a um desanuviamento hoje, após o fecho das urnas. Na verdade, há receio de que a contagem dos votos volte a ser um momento de grande tensão e dê origem a um novo período de desestabilização — apenas 31% da população diz ter confiança no Tribunal Eleitoral, diz o El País.
As sondagens atribuem vantagem a Luis Arce, o economista e ex-ministro de 57 anos escolhido pelo MAS para garantir a continuidade do legado de Morales, mas dificilmente conseguirá evitar uma segunda volta — para ser eleito à primeira, um candidato deve recolher mais de 50% dos votos, ou mais de 40% com, pelo menos, dez pontos de vantagem sobre o segundo. A saída da Presidente interina, Jeanine Añez, da corrida eleitoral, no mês passado, permitiu a Carlos Mesa, o principal adversário de Arce, diminuir a distância nas sondagens, e aparece agora com 26,8% face a 33,6% do candidato do MAS.
É difícil que o clima de confronto e de violência dê lugar a um desanuviamento depois da eleição
“Pititas” divididos
O movimento que há um ano irrompeu na cena política boliviana na liderança das manifestações contra Morales, acusando-o de fraude eleitoral, chega às eleições dividido. O seu representante é o empresário Luis Fernando Camacho, conhecido popularmente como “Macho” Camacho pelas suas declarações misóginas, que deverá acabar na terceira posição nas eleições de domingo.
Os “pititas” — como ficaram conhecidos os detractores de Morales, geralmente brancos, muito religiosos e pertencentes à classe média alta — dividem o apoio entre Mesa e Camacho e muitos criticam a existência das duas candidaturas que, dizem, divide o voto da direita e pode viabilizar uma vitória de Arce à primeira volta.
Porém, existem diferenças assinaláveis entre os dois candidatos. Mesa — que foi Presidente durante alguns meses em 2003, mas se viu obrigado a demitir por causa de uma onda de protestos lideradas por Morales, então líder sindical — é um político discreto e, apesar de ser crítico do MAS, não é de todo tão estridente como os sectores mais à direita na Bolívia gostariam. Camacho, por outro lado, com os seus discursos inflamados, sempre acompanhado de uma Bíblia, conseguiu construir um movimento com presença na rua, uma arena até agora dominada pela esquerda e pelos indígenas.
Se eleito, Mesa “manteria distância com outros partidos políticos, longe de pactos e alianças, e não terá pontes fortes com a elite cruceña [de Santa Cruz de la Sierra, o centro económico da Bolívia], que vota em Camacho, nem com os movimentos sociais, que apoiam MAS”, observa o analista Marcelo Arequipa, citado pela Euronews.
A tensão que marcou as eleições do ano passado não abandonou a paisagem política boliviana e dificilmente se irá desvanecer depois de domingo. Uma vitória de Arce irá trazer com ela uma reabilitação de Morales que os “pititas” não irão deixar passar incólume, especialmente depois de terem percebido a sua força. A eleição de Mesa poderá produzir um cenário de ingovernabilidade, com um Presidente em coabitação com um Parlamento em que muito provavelmente o MAS terá uma forte representação.
O director do Centro de Democracia e observador de longa data da política boliviana, Jim Shultz, deixa o aviso no Financial Times: “É manifestamente fácil tornar a Bolívia ingovernável. É possível fechar a economia nacional bloqueando duas estradas principais.”