À porta do Lux e do Maus Hábitos, contra a morte da música ao vivo
Centenas de pessoas juntaram-se em Lisboa e no Porto para pedir ao Governo que não deixe morrer os espaços de música ao vivo. “Se fecharem, também irão à vida músicos, DJ, técnicos e as próprias cidades”
Meia hora depois do início, pelas 15h, a concentração em forma de fila marcada para o Lux-Frágil, em Lisboa, já chegava ao Terminal de Cruzeiros. Estender-se-ia, depois, até ao Campo das Cebolas. Foram muitos os que aderiram à acção #AoVivoOuMorto, a manifestação com que a associação Circuito, constituída por 27 salas de concertos do país, quis dar conta das dificuldades que este sector tem atravessado desde que o novo coronavírus colocou grande parte da música em casa, num apelo ao Governo para assegurar a sua sobrevivência.
Músicos, DJ, porteiros, agentes, managers, programadores, empregados de balcão e outros trabalhadores do sector juntaram-se, respeitando o distanciamento físico, à fila convocada em nome dos espaços que programam música e de todo o ecossistema que deles depende. Mas a maioria dos que compareceram era público anónimo, como a designer gráfica Carla Brissos: “Estou aqui porque, ao contrário do que muita gente acha, estes espaços, alguns dos quais estão em risco de fechar, não vendem só copos. Dão-nos cultura, vida, prazer, e no meio da autêntica loucura que tem sido esta pandemia isso tem sido esquecido pelos poderes vigentes e até pela larga maioria das pessoas.”
O DJ, radialista e programador do Lux-Frágil Rui Vargas alertava, por sua vez, para a urgência de medidas de apoio e estratégias públicas de protecção e valorização do sector. Caso contrário, a cultura musical portuguesa e a dinâmica das cidades para a qual todos estes espaços emblemáticos contribuem poderão sofrer um sério revés. “Esta acção não pretende fazer pressão para abrirmos a qualquer preço. Mas exigimos atenção e apoios públicos, porque não se vislumbra luz ao fundo do túnel e não sabemos como podemos sobreviver. E não estamos apenas a falar de espaços, mas de toda uma comunidade artística que vive deste circuito e que corre o sério risco de desaparecer.”
Até agora, lamentava, o alheamento das entidades públicas tem sido absoluto. “Existe um silêncio ensurdecedor das entidades competentes em relação a este sector, que é essencial em cidades que se querem despertas e capazes de atraírem até si as mais diversas pessoas.”
“Espero que isto funcione como um sério alerta, de contrário este sector vai ser destruído”, antevia, por seu turno, o DJ e músico Bruno Cardoso, mais conhecido por Xinobi.
“Estamos a ver isso em Inglaterra, onde o Governo anda a dizer aos agentes que mais vale mudarem de actividade. Se estes espaços fecharem, também irão à vida músicos, DJ, porteiros, bengaleiros, programadores e as próprias cidades.”
Mas não são apenas as entidades governativas que têm de ser sensibilizadas para o que está a acontecer. “É preciso que também as pessoas comuns se solidarizem e compreendam o papel que esta área tem, ao nível económico e cultural”, dizia Xinobi, logo secundado por Teresa de Sousa, ou Da Chick, sua companheira na editora Discotexas. “O que está em causa não é apenas boémia. É cultura. Existe toda uma indústria por trás, da qual dependem imensas pessoas e as respectivas famílias. Infelizmente os nossos governantes não têm tido nenhuma sensibilidade a falar sobre este sector. É preciso inverter isso.”
O silêncio disse muito
À porta do Maus Hábitos, paragem obrigatória no Porto para a música alternativa, a fila começou a formar-se logo pelas 15h, mas poucos trouxeram cartazes e ninguém se lembrou dos megafones. O relativo silêncio da concentração acabou, porém, por assumir uma carga simbólica, ilustrando a timidez com que têm operado as salas desde a pandemia.
Daniel Pires, um dos fundadores do Maus Hábitos, explicou ao PÚBLICO que “a vertente de restauração” tem sido um importante bote salvavidas para o espaço, mas reconheceu também que está numa posição privilegiada: “Muitos clubes não têm essa escapatória e não podem abrir. Quer dizer, podem programar concertos para 30 pessoas quando têm espaço para 100, mas assim só acumulam prejuízo.” Um novo estado de emergência, acrescentou, poderá ser a machadada final. “Se há um novo confinamento, estas salas ficam todas ligadas às máquina e o Estado vai mesmo ter de abrir o cordão à bolsa. Isto se nos quiser salvar...”
A fila que se estendeu do Maus Hábitos à Praça da Batalha até às 16h30 foi a maior no Porto, onde também houve manifestantes silenciosos às portas do Plano B e do Ferro Bar. Abundaram as caras conhecidas, do programador Luís Salgado a Manel Cruz, de Manuel Molarinho (homem de Baleia Baleia Baleia, O Manipulador e incontáveis outros projectos) a José Roberto Gomes (de Solar Corona e Killimanjaro).
Apesar dos 30 concertos que lhe foram cancelados quando a pandemia chegou, Molarinho não se sente “o mais azarado” porque, “com iniciativas de câmaras e coisas pontuais ao ar livre”, ainda pisou os palcos dez vezes. “Estes espaços são nevrálgicos para a minha existência como músico. Foi aqui que vi concertos que me fizeram querer fazer disto a minha vida. Estou aqui hoje por eles e por mim”, salientava.
“Os Ornatos Violeta fizeram-se nos bares, foi essa a nossa estrada”, comentava Manel Cruz, na Praça da Batalha. “O Governo tem de entender que os prejuízos neste sector são tão graves como os prejuízos na saúde. Muitos músicos foram generosos e ofereceram música durante o confif namento, mas acho que perderam uma grande oportunidade de fechar a torneira e mostrar às pessoas o quão importante isto realmente é...”