“As circunstâncias em que o orçamento para 2021 foi feito não têm precedente.”
Este é o sexto Orçamento do Estado feito por um governo socialista de António Costa e a alquimia é a mesma que tem confundido as pessoas ao longo dos últimos anos. A alquimia funciona assim: quase todas as rubricas da despesa crescem, mas abaixo do crescimento nominal da economia (a despesa extraordinária por causa da covid desce mesmo em valor); por outro lado, o aumento das receitas, gerado sobretudo pelo crescimento económico, paga as novas medidas na despesa.
Tal como até aqui, o Governo consegue assim mostrar um documento em que expande os gastos sociais e vai ao encontro do seu eleitorado, do BE, do PCP e do PAN – mas em que, ao mesmo tempo, está a reduzir o défice orçamental e a dívida, preocupações do centro. Em tempos normais isto é consolidar pela via do crescimento da economia, sem austeridade, o sonho de qualquer primeiro-ministro e ministro das Finanças.
Só que estes não são tempos normais. As circunstâncias em que o Orçamento para 2021 foi feito não têm precedente. Desde logo é um Orçamento feito após uma contração recorde da economia em 2020, maior do que a acumulada durante o programa da troika. Este colapso gerou uma resposta europeia que constitui o outro aspecto inédito deste Orçamento: é a primeira vez neste século que o ministro das Finanças não tem o limite fixo da meta de défice acordada com a Comissão Europeia. A isto junta-se a total ausência de pressão dos mercados de dívida, que continuam (e vão continuar) anestesiados pela política monetária do Banco Central Europeu.
Estes seriam, em tese, incentivos para uma proposta orçamental mais expansionista do que esta, até porque é à sua esquerda que o PS quer viabilizar o documento. António Costa e João Leão parecem ter seguido, contudo, a via da
A alquimia é a mesma que tem confundido as pessoas ao longo dos últimos anos.
prudência, valorizando a subida do rácio da dívida pública de 117% para 135% do PIB e o facto de a tolerância de Bruxelas terminar daqui a um ano. Para quem (como este colunista) põe a sustentabilidade das finanças públicas à frente do resto, este é um compromisso equilibrado para 2021.
Mas é, também, um compromisso especialmente difícil de engolir à esquerda do PS. Costa tem o PCP e o Bloco encostados à parede com a necessidade de estabilidade política no meio da pandemia e com a narrativa de um Orçamento que pode explicar só pelo lado das simpatias – não é de esperar, por isso, que a proposta seja rejeitada no Parlamento.
Na substância, contudo, este tipo de política orçamental à saída de uma crise profunda está nos antípodas daquilo que o Bloco e o PCP defendem. A resistência do Bloco não é só uma questão de tática política para mostrar relevância junto do eleitorado que disputa com o PS – há, de facto, margem para uma discordância de fundo com o Governo, que só a circunstância política da pandemia pode abafar.
Na verdade, se estivesse na oposição o próprio PS teria uma discordância de fundo face ao Governo de António Costa. O partido liderado por Costa retratava (e continuou a retratar já no poder) o cumprimento das metas orçamentais rígidas para reconquistar o acesso ao mercado de dívida como uma questão de escolha, um “ajoelhar perante Bruxelas e os mercados”. A ironia de ver hoje um ministro das Finanças de um Governo do PS, sem meta para cumprir e com os mercados embalados pelo BCE, dizer que não pode ir mais longe para “conseguirmos manter o acesso ao financiamento” é tremenda.