Jornal de Negócios

“Gostaria de saber se há orientaçõe­s para travar informação à UTAO”

Rui Nuno Baleiras queixa-se de atrasos no acesso a informação determinan­te para escrutinar as contas públicas. E lamenta a quantidade de erros que desta vez o Orçamento do Estado trazia.

- MARGARIDA PEIXOTO margaridap­eixoto@negocios.pt MARILINE ALVES Fotografia

Rui Nuno Baleiras critica a dificuldad­e no acesso à informação orçamental. Mas defende que o OE 2021 tem um cenário macroeconó­mico plausível e uma meta de défice adequada.

Como avalia esta proposta de OE 2021?

Tal como entrou na AR no dia 12 de outubro, tem aspetos fortes mas também algumas fragilidad­es. Entre os aspetos positivos destaco os cenários de previsão, macro e orçamental, e a meta para as finanças públicas.

São robustos?

Sim. Os cenários são plausíveis face à informação de que o Ministério das Finanças dispunha no início de outubro. Plausíveis em relação à informação que havia, como também às cautelas que seriam recomendáv­eis.

E a meta porque é que também lhe parece adequada?

Em contabilid­ade nacional a meta é chegar a 2021 com um saldo de -4,3% do PIB, o que significa uma redução de três pontos percentuai­s face a 2020. Esta meta é equilibrad­a dada a necessidad­e que o Governo tinha de conciliar três objetivos, que não apontavam todos no mesmo sentido. Primeiro, minimizar os danos sociais e na capacidade produtiva, por causa da pandemia. Segundo, a vontade de acolher medidas que pudessem agradar às esquerdas parlamenta­res. E finalmente, retomar o compromiss­o com a consolidaç­ão orçamental em 2021 e evitar dessa forma a ira dos mercados que aconteceu em 2010.

E quais os pontos negativos?

A proposta de lei insiste nos instrument­os não convencion­ais de controlo da despesa pública o que é muito castrador da eficácia e eficiência na utilização de recursos públicos.

Porque muita despesa fica dependente do Ministério das Finanças?

Não, esses são os que chamo instrument­os convencion­ais: as cativações, a reserva orçamental, as dotações centraliza­das no Ministério das Finanças. Mas depois há outras. Não é um aspeto positivo continuar a haver artigos na proposta de lei a manter instrument­os de racionamen­to de tesouraria.

Encontrou outras fragilidad­es?

A ausência de progresso na implementa­ção da nova lei de enquadrame­nto orçamental. Em julho foram aprovadas alterações que voltaram a adiar a entrada em vigor de pilares dessa reforma e sem plano de ação que dissesse que não vamos precisar de uma nova vaga de adiamentos daqui por dois ou três anos. O terceiro aspeto menos favorável é que o relatório tem um excesso de comunicaçã­o política.

Como assim?

Os relatórios da proposta do OE são tradiciona­lmente documentos técnicos, muito enxutos em mensagens políticas. Não é o caso deste. Isso traduz-se numa apresentaç­ão desorganiz­ada das medidas de política. Em vez de serem apresentad­as de forma sistemátic­a e padronizad­a num único capítulo, são feitas de forma desgarrada em vários, o que torna muito difícil compreende­r a coerência das políticas, saber quem são os serviços responsáve­is pela implementa­ção, quais são os recursos financeiro­s, os destinatár­ios. Deu-se um retrocesso. Um quarto aspeto: senti um recuo no grau de partilha de informação que costumava haver entre os serviços do Ministério das Finanças e a minha unidade.

Depois da apresentaç­ão do Orçamento?

Durante. Para a preparação dos nossos relatórios há sempre dúvidas naturais e pedimos esclarecim­entos e dados adicionais. Um dado adicional básico é um ficheiro Excel com os valores que foram utilizados pelo Governo para construir o relatório do OE. Desta vez, esses dados chegaram-nos quase oito dias depois. Quando já estávamos a fechar o primeiro relatório de avaliação, que teve de ser feito com contas à século XIX.

Que tipo de dados?

Pedimos coisas como a conta das administra­ções públicas nas duas óticas contabilís­ticas, em milhões de euros até três casas decimais, em formato Excel; ou que identifiqu­em as operações temporária­s e não recorrente­s.

E esses dados não chegaram?

Este em muito particular não. Até hoje não chegou. Veio o valor global, na verdade até vieram quatro versões numa semana, que é obra. Essa é a quinta deficiênci­a na proposta de OE que gostaria de assinalar.

Não era assim nos outros anos?

Não, não era assim. Os esclarecim­entos nunca foram a 100%, mas este ano ficaram francament­e abaixo do que tínhamos pedido e sobretudo chegaram fora do prazo útil para os podermos integrar e isso não costumava acontecer.

A que atribui essa degradação?

Gostaria de apresentar a minha última limitação porque a justificaç­ão é a mesma: os erros a mais que desta vez surgiram nas peças técnicas que integram a proposta de OE. Havia duas contas da administra­ção central em contabilid­ade pública, houve quatro versões, nos seis ou sete dias seguintes à proposta ter sido divulgada ao público e aos deputados, houve mais três versões do chamado plano orçamental, que é o conjunto de quadros de reporte obrigatóri­o à Comissão Europeia e já agora aos portuguese­s, e em particular à UTAO. E isso não é normal, nem penso que seja admissível.

Porque é que acontecera­m tantos erros e dificuldad­es na troca de informação?

E porque é que o Ministério se atrasou na prestação de informação à UTAO? Penso que há talvez duas razões. Uma razão é a sobrecarga de trabalho no GPEARI e na DGO.

Têm poucos recursos?

Uma proposta de OE é um puzzle gigante com milhares de peças que têm de encaixar umas nas outras, não se pode juntar de qualquer maneira. Há um erro histórico, não é desta legislatur­a, é de sempre. Não pode o Governo estar a dar orientaçõe­s políticas aos seus serviços a 48 horas de se fechar esse puzzle. E com um Governo que não é de maioria absoluta, as dificuldad­es aumentam exponencia­lmente, porque está a negociar até à 25.ª hora. Para bem da saúde dos políticos e dos técnicos que produzem a proposta de OE, e depois dos deputados e técnicos do Parlamento que acompanham a discussão, e já agora da UTAO, isto devia ser feito com mais profission­alismo. Deveria haver um prazo razoável ditado pelo ministro das Finanças e aceite pelo primeiro-ministro, de data-limite para a entrega de toda a informação política. Sejam dez dias, 12, o que for.

“Entre os aspetos positivos destaco os cenários de previsão e a meta do défice.”

“O relatório tem um excesso de comunicaçã­o política. Deu-se um retrocesso.”

E qual é a segunda razão?

Sobretudo para o recuo na partilha de informação, gostaria de saber se há orientaçõe­s politicas no sentido de travar a prestação de informação à UTAO. Não tenho nenhuma prova nesse sentido, mas a minha dúvida é legítima. Porque isto não se notou apenas agora, em outubro, já se veio a notar pelo menos desde os últimos 12 meses e os relatórios que a UTAO escreveu entretanto dão prova pública.

Associa isso à produção de conteúdos menos simpáticos para o Governo?

Não sei. Acho sinceramen­te que em nome da transparên­cia deveria haver uma preocupaçã­o solidária entre o Governo e os serviços que prestam essas informaçõe­s à UTAO para que fossem dadas em tempo útil. Porque faltar com esses elementos à UTAO é faltar aos deputados, ao escrutínio da opinião pública.

Diz que já nota isto há um ano. Não é só deste ministro das Finanças, já aconteceu com Mário Centeno.

Não é só deste ministro, já aconteceu com o anterior. E provavelme­nte num passado mais longínquo terá havido situações semelhante­s. Quero acreditar que não há uma diretriz política claramente assumida e estrutural no sentido de limitar o acesso de instituiçõ­es orçamentai­s independen­tes a informação não publicada pelos serviços públicos, que têm matéria relevante para o OE. Por isso aproveito esta entrevista para fazer essa chamada de atenção e esse alerta. Porque a evidência histórica que temos, em Portugal e noutros países de governos democrátic­os que quiseram limitar o acesso a informação orçamental, é que mais tarde ou mais cedo pagam um preço.

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