“Gostaria de saber se há orientações para travar informação à UTAO”
Rui Nuno Baleiras queixa-se de atrasos no acesso a informação determinante para escrutinar as contas públicas. E lamenta a quantidade de erros que desta vez o Orçamento do Estado trazia.
Rui Nuno Baleiras critica a dificuldade no acesso à informação orçamental. Mas defende que o OE 2021 tem um cenário macroeconómico plausível e uma meta de défice adequada.
Como avalia esta proposta de OE 2021?
Tal como entrou na AR no dia 12 de outubro, tem aspetos fortes mas também algumas fragilidades. Entre os aspetos positivos destaco os cenários de previsão, macro e orçamental, e a meta para as finanças públicas.
São robustos?
Sim. Os cenários são plausíveis face à informação de que o Ministério das Finanças dispunha no início de outubro. Plausíveis em relação à informação que havia, como também às cautelas que seriam recomendáveis.
E a meta porque é que também lhe parece adequada?
Em contabilidade nacional a meta é chegar a 2021 com um saldo de -4,3% do PIB, o que significa uma redução de três pontos percentuais face a 2020. Esta meta é equilibrada dada a necessidade que o Governo tinha de conciliar três objetivos, que não apontavam todos no mesmo sentido. Primeiro, minimizar os danos sociais e na capacidade produtiva, por causa da pandemia. Segundo, a vontade de acolher medidas que pudessem agradar às esquerdas parlamentares. E finalmente, retomar o compromisso com a consolidação orçamental em 2021 e evitar dessa forma a ira dos mercados que aconteceu em 2010.
E quais os pontos negativos?
A proposta de lei insiste nos instrumentos não convencionais de controlo da despesa pública o que é muito castrador da eficácia e eficiência na utilização de recursos públicos.
Porque muita despesa fica dependente do Ministério das Finanças?
Não, esses são os que chamo instrumentos convencionais: as cativações, a reserva orçamental, as dotações centralizadas no Ministério das Finanças. Mas depois há outras. Não é um aspeto positivo continuar a haver artigos na proposta de lei a manter instrumentos de racionamento de tesouraria.
Encontrou outras fragilidades?
A ausência de progresso na implementação da nova lei de enquadramento orçamental. Em julho foram aprovadas alterações que voltaram a adiar a entrada em vigor de pilares dessa reforma e sem plano de ação que dissesse que não vamos precisar de uma nova vaga de adiamentos daqui por dois ou três anos. O terceiro aspeto menos favorável é que o relatório tem um excesso de comunicação política.
Como assim?
Os relatórios da proposta do OE são tradicionalmente documentos técnicos, muito enxutos em mensagens políticas. Não é o caso deste. Isso traduz-se numa apresentação desorganizada das medidas de política. Em vez de serem apresentadas de forma sistemática e padronizada num único capítulo, são feitas de forma desgarrada em vários, o que torna muito difícil compreender a coerência das políticas, saber quem são os serviços responsáveis pela implementação, quais são os recursos financeiros, os destinatários. Deu-se um retrocesso. Um quarto aspeto: senti um recuo no grau de partilha de informação que costumava haver entre os serviços do Ministério das Finanças e a minha unidade.
Depois da apresentação do Orçamento?
Durante. Para a preparação dos nossos relatórios há sempre dúvidas naturais e pedimos esclarecimentos e dados adicionais. Um dado adicional básico é um ficheiro Excel com os valores que foram utilizados pelo Governo para construir o relatório do OE. Desta vez, esses dados chegaram-nos quase oito dias depois. Quando já estávamos a fechar o primeiro relatório de avaliação, que teve de ser feito com contas à século XIX.
Que tipo de dados?
Pedimos coisas como a conta das administrações públicas nas duas óticas contabilísticas, em milhões de euros até três casas decimais, em formato Excel; ou que identifiquem as operações temporárias e não recorrentes.
E esses dados não chegaram?
Este em muito particular não. Até hoje não chegou. Veio o valor global, na verdade até vieram quatro versões numa semana, que é obra. Essa é a quinta deficiência na proposta de OE que gostaria de assinalar.
Não era assim nos outros anos?
Não, não era assim. Os esclarecimentos nunca foram a 100%, mas este ano ficaram francamente abaixo do que tínhamos pedido e sobretudo chegaram fora do prazo útil para os podermos integrar e isso não costumava acontecer.
A que atribui essa degradação?
Gostaria de apresentar a minha última limitação porque a justificação é a mesma: os erros a mais que desta vez surgiram nas peças técnicas que integram a proposta de OE. Havia duas contas da administração central em contabilidade pública, houve quatro versões, nos seis ou sete dias seguintes à proposta ter sido divulgada ao público e aos deputados, houve mais três versões do chamado plano orçamental, que é o conjunto de quadros de reporte obrigatório à Comissão Europeia e já agora aos portugueses, e em particular à UTAO. E isso não é normal, nem penso que seja admissível.
Porque é que aconteceram tantos erros e dificuldades na troca de informação?
E porque é que o Ministério se atrasou na prestação de informação à UTAO? Penso que há talvez duas razões. Uma razão é a sobrecarga de trabalho no GPEARI e na DGO.
Têm poucos recursos?
Uma proposta de OE é um puzzle gigante com milhares de peças que têm de encaixar umas nas outras, não se pode juntar de qualquer maneira. Há um erro histórico, não é desta legislatura, é de sempre. Não pode o Governo estar a dar orientações políticas aos seus serviços a 48 horas de se fechar esse puzzle. E com um Governo que não é de maioria absoluta, as dificuldades aumentam exponencialmente, porque está a negociar até à 25.ª hora. Para bem da saúde dos políticos e dos técnicos que produzem a proposta de OE, e depois dos deputados e técnicos do Parlamento que acompanham a discussão, e já agora da UTAO, isto devia ser feito com mais profissionalismo. Deveria haver um prazo razoável ditado pelo ministro das Finanças e aceite pelo primeiro-ministro, de data-limite para a entrega de toda a informação política. Sejam dez dias, 12, o que for.
“Entre os aspetos positivos destaco os cenários de previsão e a meta do défice.”
“O relatório tem um excesso de comunicação política. Deu-se um retrocesso.”
E qual é a segunda razão?
Sobretudo para o recuo na partilha de informação, gostaria de saber se há orientações politicas no sentido de travar a prestação de informação à UTAO. Não tenho nenhuma prova nesse sentido, mas a minha dúvida é legítima. Porque isto não se notou apenas agora, em outubro, já se veio a notar pelo menos desde os últimos 12 meses e os relatórios que a UTAO escreveu entretanto dão prova pública.
Associa isso à produção de conteúdos menos simpáticos para o Governo?
Não sei. Acho sinceramente que em nome da transparência deveria haver uma preocupação solidária entre o Governo e os serviços que prestam essas informações à UTAO para que fossem dadas em tempo útil. Porque faltar com esses elementos à UTAO é faltar aos deputados, ao escrutínio da opinião pública.
Diz que já nota isto há um ano. Não é só deste ministro das Finanças, já aconteceu com Mário Centeno.
Não é só deste ministro, já aconteceu com o anterior. E provavelmente num passado mais longínquo terá havido situações semelhantes. Quero acreditar que não há uma diretriz política claramente assumida e estrutural no sentido de limitar o acesso de instituições orçamentais independentes a informação não publicada pelos serviços públicos, que têm matéria relevante para o OE. Por isso aproveito esta entrevista para fazer essa chamada de atenção e esse alerta. Porque a evidência histórica que temos, em Portugal e noutros países de governos democráticos que quiseram limitar o acesso a informação orçamental, é que mais tarde ou mais cedo pagam um preço.