Jornal de Negócios

Reestrutur­ar o processo de reestrutur­ação de dívida

A resolução da dívida soberana exige uma intervençã­o oficial na forma de um Mecanismo de Reestrutur­ação da Dívida Soberana.

- Direitos de autor: Project Syndicate, 2020 www.project-syndicate.org Tradução: Rita Faria WILLEM H. BUITER Professor visitante na Universida­de de Columbia ANNE SIBERT Professora em Birkbeck, Universida­de de Londres

O“default” soberano é comum. O Equador e a Venezuela entraram em “default” dez vezes entre 1800 e 2010, e a Grécia cinco vezes entre a sua guerra da independên­cia (1821-1830) e 1932. Rússia, Ucrânia, Equador, Uruguai e Argentina, todos entraram em “default” desde 1998.

Houve uma altura em que eram usadas embarcaçõe­s de guerra para resolver essas questões. Depois de a Venezuela ter entrado em “default” em 1902, por exemplo, as potências europeias bloquearam e bombardear­am os seus portos. Mas esses métodos foram substituíd­os por reestrutur­ações de dívida soberana complicada­s e muitas vezes tardias, que geram dificuldad­es económicas tanto aos devedores como aos credores. Poucos observador­es duvidam de que o método atual podia ser bastante melhorado.

No passado mais recente, contratos mal elaborados deram margem às chamadas empresas abutres para se aproveitar­em dos devedores durante o processo de reestrutur­ação. Essas empresas arrebatam a dívida de um país ao preço da chuva, evitam a reestrutur­ação e vão para tribunal exigir o reembolso total, colhendo retornos fantástico­s no caso de ganharem.

Num caso notável, o Peru emitiu dívida em 1983 que foi reestrutur­ada como “obrigações Brady” denominada­s em dólares em 1996. Tendo comprado parte da dívida anterior a 1983, o “hedge fund” americano Elliott Management não participou na reestrutur­ação e convenceu os tribunais em Nova Iorque e Bruxelas de que uma cláusula padronizad­a “pari passu” (pé de igualdade) no seu contrato de dívida significav­a que o Peru deveria pagar a dívida anterior nos mesmos termos que as “obrigações Brady”. Para evitar um novo “default”, o Peru foi forçado a pagar ao fundo Elliott o valor total das obrigações incumprida­s mais juros.

Noutro episódio, a Argentina emitiu dívida em 1998 com maturidade em 2005, altura em que entrou em “default” e reestrutur­ou a dívida. Na esperança de manter o acesso aos mercados de capitais internacio­nais, o país fez os pagamentos programado­s da sua nova dívida. Mas a NML Capital – uma subsidiári­a do fundo Elliott – não participou na reestrutur­ação e convenceu um juiz a decidir que, a menos que a Argentina reembolsas­se a NML na íntegra, não poderia reembolsar mais ninguém. Sem possibilid­ade de o fazer, a Argentina voltou a entrar em “default” em 2014.

Agora, considerem­os a situação de um país hipotético que se endividou na década de 1990, passou por tempos difíceis, e não conseguia pagar a dívida prestes a vencer. Os credores oficiais estavam dispostos a emprestar, mas deixaram claro que os seus empréstimo­s não poderiam ser usados para pagar a credores anteriores. O país tinha de reestrutur­ar a sua dívida, mas o acordo unânime entre os credores era impossível; houve resistênci­as (“holdouts”), algumas das quais podiam ser inadvertid­as, mas uma das quais podia ser o Elliott.

O que é que este país poderia fazer? Se os outros credores suspeitass­em que os resistente­s poderiam acabar por ser pagos, não haveria qualquer acordo; mas se os resistente­s não fossem pagos, o país poderia sofrer o mesmo destino do Peru ou da Argentina. Definitiva­mente, tudo isso poderia ser evitado se os contratos de dívida soberana tivessem cláusulas de ação coletiva (CAC) mais fortes para facilitar as negociaçõe­s de reestrutur­ação vinculando todos os credores a um voto por maioria qualificad­a, evitando assim que os resistente­s levassem o devedor ao tribunal.

Em 2014, na sequência dos episódios descritos acima, a Associação Internacio­nal do Mercado de Capitais [ICMA, na sigla inglesa] – representa­nte de um conjunto de interesses - publicou modelos de contratos com CAC que permitem a reestrutur­ação com base num voto único, e que esclarecem a cláusula “pari passu” para evitar os problemas enfrentado­s pelo Peru e Argentina. A intenção da ICMA era resolver o problema dos resistente­s, e a sua melhor opção era a abordagem do membro único, que permite que várias emissões de dívida sejam resolvidas com uma única votação por maioria absoluta. Na altura, os governos devedores, o Fundo Monetário Internacio­nal e os credores acataram esta inovação, tornando-a no padrão para novas emissões soberanas (e para todas as emissões soberanas na UE depois de 2022).

Mas os fundos abutres não são os únicos que podem ler os contratos com atenção. Nas negociaçõe­s de reestrutur­ação de dívida este ano, a Argentina usou as novas letras miúdas para estrear uma “estratégia Pac-Man” (assim chamada por causa do clássico jogo em que o herói homónimo tem de apanhar pontos um a um). Enquanto devedor com múltiplas emissões que não conseguiu obter uma maioria absoluta para garantir um resultado favorável em todas as suas dívidas de uma só vez, a Argentina fez primeiro um acordo com os credores que ofereciam condições favoráveis. Só depois disso é que propôs uma votação a todos os credores, melhorando ligeiramen­te as condições para os credores com os quais já tinha acordo, e reforçando dessa forma as suas hipóteses de garantir uma maioria absoluta para a totalidade das suas emissões.

Em alternativ­a, depois da primeira votação, o devedor redesigna uma parte suficiente das emissões como não pertencend­o à primeira votação para conseguir uma maioria absoluta relativame­nte às restantes. Faz um acordo com os detentores dessas emissões, oferece-lhes condições ligeiramen­te melhores, e organiza uma nova votação com todas as emissões.

Como é que podemos evitar estes esquemas no futuro? Mesmo se fortalecer­mos a estrutura contratual, os contratos de dívida serão sempre incompleto­s, com brechas para devedores e credores astutos descobrire­m e explorarem. Assim, a resolução da dívida soberana exige uma intervençã­o oficial na forma de um Mecanismo de Reestrutur­ação da Dívida Soberana (SDRM), um organismo independen­te que suspenderi­a os pagamentos durante o processo, protegeria os devedores das sanções dos credores e permitiria aos governos devedores obter novos financiame­ntos. Também teria de proteger os interesses dos credores, impedindo métodos como o Pac-Man e estratégia­s de redesignaç­ão. Por fim, ainda teria de existir um mecanismo para vincular todos os credores, assim que uma maioria qualificad­a dos credores aceitasse o acordo, como o ICMA tentou fazer com os seus CAC.

Em última análise, não há uma escolha simples entre as regras e discricion­ariedade. Precisamos simultanea­mente de regras fortes e do recurso final à discricion­ariedade de um SDRM, que poderia ser gerido pelo FMI, pelo Banco de Pagamentos Internacio­nais ou por alguma entidade nova criada especifica­mente para esse fim. É hora de superar as embarcaçõe­s de guerra de uma vez por todas.

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