Reestruturar o processo de reestruturação de dívida
A resolução da dívida soberana exige uma intervenção oficial na forma de um Mecanismo de Reestruturação da Dívida Soberana.
O“default” soberano é comum. O Equador e a Venezuela entraram em “default” dez vezes entre 1800 e 2010, e a Grécia cinco vezes entre a sua guerra da independência (1821-1830) e 1932. Rússia, Ucrânia, Equador, Uruguai e Argentina, todos entraram em “default” desde 1998.
Houve uma altura em que eram usadas embarcações de guerra para resolver essas questões. Depois de a Venezuela ter entrado em “default” em 1902, por exemplo, as potências europeias bloquearam e bombardearam os seus portos. Mas esses métodos foram substituídos por reestruturações de dívida soberana complicadas e muitas vezes tardias, que geram dificuldades económicas tanto aos devedores como aos credores. Poucos observadores duvidam de que o método atual podia ser bastante melhorado.
No passado mais recente, contratos mal elaborados deram margem às chamadas empresas abutres para se aproveitarem dos devedores durante o processo de reestruturação. Essas empresas arrebatam a dívida de um país ao preço da chuva, evitam a reestruturação e vão para tribunal exigir o reembolso total, colhendo retornos fantásticos no caso de ganharem.
Num caso notável, o Peru emitiu dívida em 1983 que foi reestruturada como “obrigações Brady” denominadas em dólares em 1996. Tendo comprado parte da dívida anterior a 1983, o “hedge fund” americano Elliott Management não participou na reestruturação e convenceu os tribunais em Nova Iorque e Bruxelas de que uma cláusula padronizada “pari passu” (pé de igualdade) no seu contrato de dívida significava que o Peru deveria pagar a dívida anterior nos mesmos termos que as “obrigações Brady”. Para evitar um novo “default”, o Peru foi forçado a pagar ao fundo Elliott o valor total das obrigações incumpridas mais juros.
Noutro episódio, a Argentina emitiu dívida em 1998 com maturidade em 2005, altura em que entrou em “default” e reestruturou a dívida. Na esperança de manter o acesso aos mercados de capitais internacionais, o país fez os pagamentos programados da sua nova dívida. Mas a NML Capital – uma subsidiária do fundo Elliott – não participou na reestruturação e convenceu um juiz a decidir que, a menos que a Argentina reembolsasse a NML na íntegra, não poderia reembolsar mais ninguém. Sem possibilidade de o fazer, a Argentina voltou a entrar em “default” em 2014.
Agora, consideremos a situação de um país hipotético que se endividou na década de 1990, passou por tempos difíceis, e não conseguia pagar a dívida prestes a vencer. Os credores oficiais estavam dispostos a emprestar, mas deixaram claro que os seus empréstimos não poderiam ser usados para pagar a credores anteriores. O país tinha de reestruturar a sua dívida, mas o acordo unânime entre os credores era impossível; houve resistências (“holdouts”), algumas das quais podiam ser inadvertidas, mas uma das quais podia ser o Elliott.
O que é que este país poderia fazer? Se os outros credores suspeitassem que os resistentes poderiam acabar por ser pagos, não haveria qualquer acordo; mas se os resistentes não fossem pagos, o país poderia sofrer o mesmo destino do Peru ou da Argentina. Definitivamente, tudo isso poderia ser evitado se os contratos de dívida soberana tivessem cláusulas de ação coletiva (CAC) mais fortes para facilitar as negociações de reestruturação vinculando todos os credores a um voto por maioria qualificada, evitando assim que os resistentes levassem o devedor ao tribunal.
Em 2014, na sequência dos episódios descritos acima, a Associação Internacional do Mercado de Capitais [ICMA, na sigla inglesa] – representante de um conjunto de interesses - publicou modelos de contratos com CAC que permitem a reestruturação com base num voto único, e que esclarecem a cláusula “pari passu” para evitar os problemas enfrentados pelo Peru e Argentina. A intenção da ICMA era resolver o problema dos resistentes, e a sua melhor opção era a abordagem do membro único, que permite que várias emissões de dívida sejam resolvidas com uma única votação por maioria absoluta. Na altura, os governos devedores, o Fundo Monetário Internacional e os credores acataram esta inovação, tornando-a no padrão para novas emissões soberanas (e para todas as emissões soberanas na UE depois de 2022).
Mas os fundos abutres não são os únicos que podem ler os contratos com atenção. Nas negociações de reestruturação de dívida este ano, a Argentina usou as novas letras miúdas para estrear uma “estratégia Pac-Man” (assim chamada por causa do clássico jogo em que o herói homónimo tem de apanhar pontos um a um). Enquanto devedor com múltiplas emissões que não conseguiu obter uma maioria absoluta para garantir um resultado favorável em todas as suas dívidas de uma só vez, a Argentina fez primeiro um acordo com os credores que ofereciam condições favoráveis. Só depois disso é que propôs uma votação a todos os credores, melhorando ligeiramente as condições para os credores com os quais já tinha acordo, e reforçando dessa forma as suas hipóteses de garantir uma maioria absoluta para a totalidade das suas emissões.
Em alternativa, depois da primeira votação, o devedor redesigna uma parte suficiente das emissões como não pertencendo à primeira votação para conseguir uma maioria absoluta relativamente às restantes. Faz um acordo com os detentores dessas emissões, oferece-lhes condições ligeiramente melhores, e organiza uma nova votação com todas as emissões.
Como é que podemos evitar estes esquemas no futuro? Mesmo se fortalecermos a estrutura contratual, os contratos de dívida serão sempre incompletos, com brechas para devedores e credores astutos descobrirem e explorarem. Assim, a resolução da dívida soberana exige uma intervenção oficial na forma de um Mecanismo de Reestruturação da Dívida Soberana (SDRM), um organismo independente que suspenderia os pagamentos durante o processo, protegeria os devedores das sanções dos credores e permitiria aos governos devedores obter novos financiamentos. Também teria de proteger os interesses dos credores, impedindo métodos como o Pac-Man e estratégias de redesignação. Por fim, ainda teria de existir um mecanismo para vincular todos os credores, assim que uma maioria qualificada dos credores aceitasse o acordo, como o ICMA tentou fazer com os seus CAC.
Em última análise, não há uma escolha simples entre as regras e discricionariedade. Precisamos simultaneamente de regras fortes e do recurso final à discricionariedade de um SDRM, que poderia ser gerido pelo FMI, pelo Banco de Pagamentos Internacionais ou por alguma entidade nova criada especificamente para esse fim. É hora de superar as embarcações de guerra de uma vez por todas.