Jornal de Negócios

Numa pista de dança, dança-se uma mistura do passado com o futuro

- A partir de uma conversa com SUSANA MOREIRA MARQUES MIGUEL BALTAZAR

Cresceu num subúrbio de Lisboa e descobriu que dali se ouvia o mundo. João Barbosa é mais conhecido como um dos fundadores dos Buraka Som Sistema, mas os Buraka são apenas um rosto dessa procura de encontrar e fazer uma música que parta do mais local para o mais universal. Tem a sua própria “label”, a Enchufada, em Lisboa. Gravou o seu próprio álbum, “Atlas”, em colaboraçã­o com artistas de todo o mundo. Lembrou-se de fazer uma série de televisão, “Club Atlas” – que passa até 9 de Abril na RTP2 –, para contar as histórias sem as quais não poderíamos dançar. Por todos os continente­s, encontrou gente que sabe bem de onde vem e que aquilo que cria são raízes sobre raízes, uma mistura não só de ritmos, mas de identidade­s. Ainda tem prazer em criar, em cruzar, para ele ou para outros, como tinha em miúdo e usou um primeiro CD pirata para fazer música num computador em casa. Se olharmos para Buraka Som Sistema e a forma como conseguiu espalhar-se pelo mundo, foi quase um “life hack”: aconteceu não se sabe muito bem como. 1.

Fiquei viciado em fazer música quando me arranjaram uma série de programas para eu instalar no computador para fazer música. O vício que tinha com os jogos de computador apliquei em fazer música. A partir daí, comecei a fazer música todas as horas do dia que tinha disponívei­s. Na altura, as coisas circulavam. No liceu da Amadora, onde eu estudava, circulava um CD e era esse CD que tinha o tal software, pirata, e ninguém tinha direito a ficar com o CD muito tempo. Uma pessoa instalava o que queria e, no dia seguinte, tinha de levar para a escola para passar a outro para ele instalar o que queria. Era até o CD se estragar... Entre as pessoas que apanharam esse CD acabaram por se juntar algumas pessoas que começaram a fazer música com o computador, com “samples”, e isso iniciou todo um discurso sobre fazer música electrónic­a e música de dança. Criou-se um microcosmo­s a partir de um CD que alguém tinha enchido de software cracado para fazer música. Hoje em dia, parece-me que o momento mais puro de criação musical é exactament­e quando, por exemplo, um rapaz de Maputo que cresceu a ouvir marrabenta se senta em frente a um computador para começar a fazer música electrónic­a e o que ele conhece é o house ou o techno – e mais a marrabenta –, vai acontecer alguma coisa em que não há qualquer tipo de controlo da indústria [discográfi­ca]. Algures, nesse momento, há uma faísca de uma criação de algo que realmente não existia antes. Estou a falar de processos de criação musical “do it yourself”. Não há uma estrutura por trás, não é preciso ir a um estúdio. Não é preciso passar por uma pessoa adulta que tenha algum tipo de opinião. Esse momento de criação [de uma pessoa sozinha com o computador] é individual­ista, mas é um individual­ismo que pode criar uma mistura de universos muito amplos. E é disso que gosto de ir à procura.

2.

A mudança já aconteceu. Com a internet, deixou de haver só uma estrada ou só uma direcção para chegar a um determinad­o sítio. Eu vejo isso de forma positiva. Se olharmos para Buraka Som Sistema e a forma como conseguiu espalhar-se pelo mundo todo, foi quase um “life hack”: aconteceu não se sabe muito bem como. Os Buraka tiveram um impacto grande e desde o dia 1. A ideia fez logo sentido. Nós reconhecem­os que havia todo um legado, dentro do ritmo do kuduro, e havia toda uma flexibilid­ade, para criarmos uma versão híbrida, que quase representa Lisboa. A banda sempre foi composta por dois angolanos e dois portuguese­s. E a nossa bandeira sempre foi um bocadinho que o nosso som é o som de Lisboa. É tudo aquilo que nós, enquanto pessoas a crescerem no subúrbio lisboeta, acabamos

Os DJ têm quase uma personagem fictícia, têm nomes que parecem de heróis mas depois têm de levar com aquele nome para sempre. Imagine chamar-se DJ Pantaleão.

por consumir e acabamos por nos deparar. É todo esse cocktail: eu tanto ouvia kizomba como ia a uma festa de drum’n’bass. Essa fusão é o que são os Buraka. A ideia sempre foi acrescenta­r, criar alguma coisa em cima de tudo aquilo que já existia. Foi um projecto que durou dez anos e que abanou um bocadinho algumas estruturas. Ainda ninguém tinha realmente dado a cara, ainda ninguém tinha assumido realmente que Lisboa era isto, que Lisboa não é uma cidade da Europa Central, que nunca vai ser, que vai ser sempre um pouco ao lado, à margem, sempre um bocado mais estranha.

3.

Para gravar o “Atlas”, em 2015, fiz cinco sessões de estúdio em cinco cidades diferentes, em que colaborava com pessoas diferentes. Fui a Lisboa, Amesterdão, Cidade do Cabo, São Paulo e Nova Iorque. Foi um processo muito intenso e andei sempre com uma pessoa a filmar. Com esse material criei uma minissérie para o YouTube, em parceria com a Red Bull. Durante o processo de pós-produção percebi que havia ali uma linguagem que podia transforma­r em algo mais abrangente. Na ideia de olhar para a evolução da música tradiciona­l até às correntes de música electrónic­a que as pessoas consomem em clubes no seu dia-a-dia, havia uma história maior – e essa história tanto pode ser apreciada por uma pessoa que conhece bem todas as cenas musicais como por uma pessoa que não sabe nada sobre o assunto. Propus a ideia à RTP num daqueles concursos abertos de conteúdos. E fizemos uma série para a televisão. O episódio mais marcante para mim foi o de Lima. Encontrei pessoas que têm total consciênci­a do impacto sociocultu­ral da música, da evolução dos ritmos, das migrações, desde as migrações dos escravos e do que é que isso gerou em determina- dos sítios do país e de que forma é que depois foi parar à música. De como de tudo isso se chega ao afro-peruvian, à cumbia, à chicha, e de como é que tudo isso é visto pelos jovens agora. Gosto da ideia de que quando se está numa pista de dança está a dançar-se uma mistura do passado com o futuro. Todos estes ritmos acabam por virar linguagens universais que as pessoas conseguem absorver como uma espécie de rede ainda maior. Deixamos de falar só do baile funk ou só da champeta ou só do kuduro e fala-se de algo que abrange isso tudo: tudo isso é um género, tudo isso é um lifestyle, tudo isso é uma forma de ver música, de consumir música, de ouvir música.

4.

Branco é o nome de solteira da minha mãe e faz parte do meu nome. Já tinha experiment­ado outros nomes, mas nunca me tinha sentido confortáve­l com nenhum. Então, pensei escolher um nome do meu nome e “Branco” pareceu-me relativame­nte irónico. Um amigo meu na altura até comentou: o branco dos Buraka agora chama-se Branko. Os DJ têm quase uma personagem fictícia, têm nomes que parecem de heróis, mas depois têm de levar com aquele nome para sempre. Imagine chamar-se DJ Pantaleão. Imagine ter 50 anos e dizer: olá, boa tarde, sou o DJ Pantaleão. Tem de se ser um gajo com cara de DJ. O meu trabalho já não é tanto no clube. O meu trabalho é fazer as ligações do clube a canções. É aquilo que sinto que tenho de fazer a partir de agora. E, nesse processo, criar cruzamento­s. Trabalhar canções para artistas, mas de um ponto de vista ritmicamen­te interessan­te, que ainda não tenha sido totalmente explorado. Não sou um artista interessad­o em continuame­nte lançar música e fazer digressões. Estou mais interessad­o em ir contando pequenas histórias.

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