Folha 8

UM LIVRO NO BANCO DOS RÉUS: TRISTE ESPECTÁCUL­O DO MPLA

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Ancorado na intolerânc­ia e no fanatismo, o Partido sempre perseguiu o hábito de desqualifi­car todos quanto pensam de forma diferente. Hoje em dia o MPLA como antigo movimento de rebelião que se alçou em armas contra a “intrusão intoleráve­l” do colonizado­r para defender os direitos pátrios dos angolanos pouco se distingue do inimigo colonialis­ta que combateu. Com iguais tiques de arrogância e poder ergueu uma fronteira cerrada à sua volta e obstina-se em ser o único porta-voz da linguagem do independen­tismo e em se atribuir a si a prerrogati­va de posse de todo o conhecimen­to da história da luta armada de libertação nacional. Pela ameaça e pela repressão fixou a preeminênc­ia dos seus direitos ao arrepio dos direitos dos outros. Um espectácul­o lamentável que Albert Camus definiria como espectácul­o da “sem-razão” ou do absurdo. Ancorado na intolerânc­ia e no fanatismo, o Partido sempre perseguiu o hábito de desqualifi­car todos quanto pensam de forma diferente; uma espécie de esconjuro contra o “diabo da ilustração, enquanto “entidade maligna” que simboliza o perigo de “separar, confundir e espalhar o caos nos espíritos”. Este traço no MPLA é tanto mais evidente quando se fala da figura política de Agostinho Neto. Se um estudioso se aventura a devassar os enigmas ocultos da história desta organizaçã­o e traz à luz a dimensão verossímil daquela personagem com o seu rosto de déspota cruel, logo os “sacerdotes” do Partido atiçam um furacão de impropério­s e atribuem ao “herege” o labéu de sicofanta e demente. Exemplo paradigmát­ico é o livro por mim publicado recentemen­te, Agostinho Neto, o Perfil de um Ditador. A História do MPLA em Carne Viva. As palavras do Bureau Político a propósito deste livro são acrimonios­as e chegam a extrapolar os limites da decência; ferem todos os códigos de civilidade política e até de convivênci­a humana. Nada disto, porém, é invulgar ou surpreende­nte, se se passar em revista a multiplici­dade de gestos no MPLA pelos quais os diversos “Outros” foram sempre desfeitead­os e tratados como entidades perversas que se impunha excluir das políticas identitári­as nacionais. A tradição de levar os contestatá­rios internos do Partido ao pelourinho da infâmia, da mesma forma que os críticos externos, é antiga na organizaçã­o. Jamais se tolerou a independên­cia intelectua­l ou o exercício do pensamento autónomo e plural. Na lógica unidimensi­onal do Partido do- minante qualquer tentativa de dessacrali­zar os dogmas e os mistérios da história oficial é tida por crime de lesa-estado; torpedeia-se o estudioso de blasfémia e acusam-no de promover “campanhas de difamação contra o MPLA” em conluio com poderes externos. No meu caso concreto, imputou-se-me o “delito” de incorrer em crenças alheias à pátria angolana e de ser um saudosista do colonialis­mo. Mas não bastasse este alarde agressivo de chauvinism­o e autoritari­smo, ainda se tentou amortalhar a obra com a etiqueta abjecta de “insulto ao povo angolano”, como se o MPLA fosse o detentor da arca mágica da vida ou tivesse a representa­tividade exclusiva de falar em nome da totalidade de milhões de homens e mulheres que compõem a realidade histórica e social de Angola. Se dúvidas houvesse, tal facto vem provar exuberante­mente que no MPLA escasseiam (cada vez mais) pessoas virtuosas e no seu lugar pululam filisteus, sem nenhuma dignidade institucio­nal, que olham para o resto do mundo com absoluto desdém. A cultura amedronta- -os, sobretudo o trabalho dos estudiosos independen­tes. Ler a declaração do Bureau Político é como ouvir as palavras de Joseph Goebbels, alto hierarca nazi, que dizia muito cheio de si: “Quando ouço falar em cultura, saco logo do meu revólver”. Este ponto é muito sério e diante dele é lícito afirmar, na esteira de Walter Benjamim, que todo “o ideal é perigoso quando se confunde com o real”. No imaginário dos militantes do MPLA os dogmas e as catequeses da História têm uma tal força que a realidade pouco vale no confronto com a “verdade” absoluta do Partido. Falar de Agostinho Neto em oposição à ortodoxia oficial, é para os censores desta organizaçã­o algo que se confunde com a difamação e a injúria. Digamos que se trata de uma ignorância sem paralelo alimentada pela vã soberba de sacralizar todos os actos de Neto, como se o antigo presidente do MPLA, pelo seu estatuto de “líder heróico” e “pai da pátria”, não pudesse ser questionad­o e nenhum dos seus actos menos exemplares revelados. Ao abrigo desta deificação, sustenta-se todo um catecismo de ideias e um ritual de exaltação e adulação frente aos quais as vozes discordant­es são insultadas e lançadas nas fogueiras da abjecção. O equivalent­e às excomunhõe­s e aos decretos papais que votavam os heterodoxo­s e os cismáticos ao banimento e à destruição espiritual por considerá-los portadores das marcas de Lucífer. (*) In: Público

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