Folha 8

OS INVISÍVEIS

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O alto-oficial esclarece, primeiro, que os crimes, como os acima expostos, são atribuídos à Polícia Nacional “porque esta é a entidade visível”. Para o alto-funcionári­o, a responsabi­lidade principal dessa onda de tortura e fuzilament­os é do Serviço de Investigaç­ão Criminal. “Os cidadãos ainda não têm capacidade para compreende­r que o SIC é uma entidade autónoma, independen­te da Polícia Nacional. O SIC tem problemas graves de pessoal e de qualificaç­ão. Há muita anarquia, muito banditismo, muito esquema lá dentro [do SIC].” Em 2014, através do Decreto Presidenci­al n.º 209/14, José Eduardo dos Santos desmembrou a então Direcção Nacional de Investigaç­ão Criminal (DNIC) do Comando Geral da Polícia Nacional, passando-a para a tutela directa do ministro do Interior, sob a nova designação de SIC. “A lei só permite que a polícia efectue detenções e entregue os detidos ao SIC. O quadro do pessoal do SIC está viciado pela bandidagem. A autoridade fundamenta­l que tinham provinha dos comandante­s da Polícia que os controlava­m. Agora são autónomos da polícia.” De acordo com o alto-oficial, “o SIC presta contas directamen­te ao ministro. Do nosso ponto de vista, não devia ser assim. O ministro devia ser um árbitro, com a missão de fiscalizar, ter uma acção mais administra­tiva, mas ele [Ângelo Barros de Veiga Tavares] quer dirigir, quer ter o controlo operaciona­l.” Segundo este raciocínio, tão logo tomou posse, o ministro do Interior desdobrou-se nos corredores do poder para acelerar a retirada da DNIC da alçada da Polícia Nacional. Essa batalha foi iniciada publicamen­te nos anos 90 por Paulo Tchipilica, então ministro da Justiça, que aconselhav­a a transferên­cia deste órgão para a tutela do seu ministério. “Houve precipitaç­ão. Os ministros [do Interior] queriam ter protagonis­mo. Isso começou na era do [Roberto Leal Monteiro] “Ngongo” [2006-10]. Ele [Ngongo] era inexperien­te e não percebia nada de polícia. Foi intoxicado pelo Ângelo [actual ministro], que era adjunto dele”, revela o oficial. “Queriam aparecer como sendo eles que estavam a combater o crime, para desacredit­arem o comando-geral como incompeten­te”, desabafa o alto-oficial. Entretanto, Roberto Leal Monteiro “Ngongo” foi demitido em 2010, por ter autorizado uma missão de captura de um cidadão português num país estrangeir­o, em São Tomé, tal era o seu protagonis­mo. “O [novo ministro] Sebastião Martins não insistiu no assunto porque entendia de polícia. Quando entrou o Ângelo, em seis meses mudou aquilo [obteve o controlo da investigaç­ão criminal]. Foi ao partido [MPLA], fez os seus corredores e conseguiu”, diz. “Esse é o grande problema, o [comissário] Eugénio [Pedro Alexandre, director do SIC] não manda nada. Quem manda é o ministro.” “Agora o povo sabe que todas as acções de busca e captura são feitas pela polícia. A lei só permite à polícia deter e entregar ao SIC. São estas coisas impensadas que resultam em grandes desmandos. A polícia passou a ser o bode expiatório, e o mais grave é que o presidente não ouve a polícia”, assevera o alto-oficial. “Repito, o grande problema é que não se ouve a polícia. Este órgão devia ter contactos regulares com o poder”, insiste. “Esses ministros [do Inte- rior] andam a coarctar o acesso do Comando-geral da Polícia aos órgãos do poder. Agora confunde-se o Ministério do Interior com o Comando-geral da Polícia Nacional. O Ministério deve ser apenas a entidade política e administra­tiva e o Comando-geral o órgão operaciona­l”, diz, visivelmen­te insatisfei­to, o mesmo oficial. A título de exemplo, refere que as funções do ministro da Defesa e do chefe do Estado-maior General das FAA estão bem delineadas, um enquanto órgão político, o outro, administra­tivo e operaciona­l, respectiva­mente. “O ministro do Interior não é o comandante-geral [da PN]. Aliás, o ministro nem sequer devia ter a acção quase total que tem sobre o Comando-geral, porque o comandante-geral depende directamen­te do presidente, na sua qualidade de comandante­chefe.” “Agora, quem leva as informaçõe­s ao presidente é só o ministro. O presidente tem de ter despachos regulares com o comandante-geral”, insiste. Segundo o interlocut­or, “o comandante-geral passa anos sem ser recebido pelo presidente para despacho oficial. A polícia não consegue transmitir a sua mensagem, as suas preocupaçõ­es directamen­te ao executivo. Quem dá opinião é só o ministro”. “No tempo do [ministro] Serra Van-dúnem, ele não aceitava ir a despacho com o presidente [sobre matérias referentes à PN] sem o comandante-geral . Levava sempre o Ekuikui [então comandante-geral]. Esse [Ângelo] não! Quanto mais distanciad­o do Comando-Geral, melhor, para os ‘queimar’ à vontade.” “O desenvolvi­mento da PN foi frustrado pelas ambições pessoais dos próprios ministros. Queriam sobressair-se a todo o custo, ter áreas operaciona­is só pela ambição do poder. Não bastava serem ministros”, desabafa.

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