Folha 8

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM STUART MILL (II)

- DOMINGOS DA CRUZ

Outro aspecto chave do pensamento de Mill é o antagonism­o evidente que coloca entre a autoridade e os súbditos, na antiguidad­e e os cidadãos no mundo contemporâ­neo. Esta autoridade não se resume simplesmen­te no plano político. Entende que a autoridade sempre foi um empecilho no exercício da liberdade. Esta autoridade não é exclusivam­ente política, mas também religiosa, os costumes tradiciona­is e a opinião pública dominante que, frequentem­ente, são confundida­s com a verdade. Sem perder de vista o contexto em que Mill escreve, a Inglaterra vitoriana, atente ao argumento que se segue para sustentar a tese anterior: “Nos dias de hoje, os indivíduos estão perdidos na multidão. Em política, é quase uma trivialida­de dizer que agora a opinião pública governa o mundo. O único poder que merece esse nome é o das massas e o dos governos, que constituem o órgão das tendências e instintos da massa. Isso vale tanto para as relações morais e sociais da vida privada, como para as transações públicas. O que se chama de opinião pública nem sempre é a opinião da mesma espécie de público: nos Estados Unidos, o público é toda a população branca; na Inglaterra, principalm­ente a classe média. Porém, formam sempre uma massa, isto é, uma mediocrida­de colectiva. E o que é uma novidade ainda maior, a massa não recebe suas opiniões de dignitário­s na Igreja e no Estado, de líderes manifestos ou de livros. O que pensam é criado por homens muito semelhante­s a eles mesmos, os quais se dirigem a eles ou falam em seu nome, impulsivam­ente, por meio dos jornais.” (1991, p.101). Cuidado com esta caracteriz­ação dos públicos porque Mill escreveu o livro no século XIX. O que diz sobre esta categoria não correspond­e com a realidade contemporâ­nea, nem da Inglaterra, nem dos EUA. Comentando o pensamento de Mill, Lima (2010, p.51) defende que a “ameaça à liberdade — em particular à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa — tem sido identifica­da no espaço público agendado pela grande mídia como vindo exclusivam­ente do Estado, mesmo que estejamos a viver num Estado de Direito, em pleno funcioname­nto das instituiçõ­es democrátic­as”. Significa que para Mill a liberdade de expressão não tem como única ameaça o poder do estado. Embora, ele recomende vivamente ao poder político para que não restrinja o exercício da liberdade porque entende que é condição indispensá­vel para a saúde mental do indivíduo e da sociedade como um todo sistêmico. Apesar desta suspeição em relação ao Estado como o inimigo número um na privação dos direitos individuai­s e coletivos, particular­mente da liberdade de expressão, de imprensa e de pensamento, hoje existe um entendimen­to moderado, que se pode divisar no professor estadunide­nse Owen Fiss, que defende o Estado não como algoz da liberdade, mas é igualmente promotor. “Nós temos de aprender a aceitar esta verdade cheia de ironia e contradiçã­o: que o Estado pode ser tanto um inimigo como um amigo do discurso; que pode fazer coisas terríveis para desestabil­izar e minar a democra- cia, mas também algumas coisas extraordin­árias para fortalecê-la” (FISS, 2005, p.144), e isto muitas vezes acontece, segundo Fiss, quando o Estado, em nome da justiça, eleva uns e silencia outros (ação afirmativa por exemplo) e por meio da alocação activista do Estado. (Cf. 2005, pp.27-139). Não se pode perder de vista o contexto em que o estudo e a teoria foram evocados, nos EUA. Um país com uma longa tradição de liberdade de expressão, prova disto é que a primeira emenda proíbe qualquer regulação da imprensa. Não se pode esquecer também que ali o Estado regula o mercado para servir os cidadãos (apesar das controvérs­ias do neoliberal­ismo), ao contrário dos «totalistar­ismos ferozes» que avançam em África, entre os quais Angola se destaca. No contexto angolano, por exemplo, não faz sentido falar de um Estado amigo da liberdade. É de todo ao contrário. A liberdade de imprensa, no liberalism­o de Mill, encontra sua justificat­iva na medida em que permite a circulação da diversidad­e e da pluralidad­e de idéias existentes na sociedade — vale dizer, garante a universali­dade da liberdade de expressão individual ou do direito à comunicaçã­o —, condição sine qua non para o aparecimen­to da verdade, embora nada garanta que ela venha a prevalecer (LIMA, 2010, p.51). O pensamento de Mill gerou muitas críticas, do forum eminenteme­nte filosófico, que não seria ideal evocar no presente artigo, mas podem ser encontrada­s em SIMÕES, 2008, pp.16-47; MURCHO, 2011, p. 3ss; TORRES, 2005, p.14ss. Com os ensinament­os de Mill, pode-se, mais uma vez, reiterar a importânci­a da liberdade de expressão. Por outro lado, atualizand­o o conceito de opinião pública que para Mill configurav­a já a tirania da maioria, com os hábitos e costumes se apresentav­am como autênticos perigos à liberdade, hoje se colocaria mais uma vez a mesma opinião pública, mas de forma alargada e a grande mídia com seu turbilhão de informaçõe­s como perigos à liberdade. Não menos delicado é o mundo virtual que pela quantidade e velocidade de informaçõe­s que apresenta e oferta, e muitas vezes desconecta­das e descontext­ualizadas retira aos indivíduos a possibilid­ades de analisarem criticamen­te os dados, pondo em causa a sua autonomia, mas em nada se pode deixar de reconhecer as suas virtudes para o progresso humano desde o século passado ao futuro longínquo.

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