OPINIÃO DE JOÃO PAULO BATALHA
“A guerra provocada pelo processo judicial contra Manuel Vicente não é um conflito entre Portugal e Angola. É um conflito, em Portugal e em Angola, entre os que defendem uma democracia plena com separação de poderes e os que, ao Estado de Direito preferem um Estado de cavalheiros. O ministro das Relações Exteriores de Angola já tinha sido suficientemente crítico, notando abertamente que o andamento da cooperação e dos negócios com Portugal dependeria da impunidade que o Estado português estendesse a Manuel Vicente. Agora, o próprio Presidente João Lourenço (até aqui prudentemente calado) entrou na contenda, num tom não tão forte, mas acusando a “ofensa” de os tribunais portugueses não entregarem à justiça angolana um arguido, acusado de crimes cometidos em território português, para ser protegido por uma lei de imunidade e uma lei de amnistia (a de 2016) que garantiriam que nunca veria o interior de uma sala de tribunal. O Governo português tentou deitar água na fervura. O primeiro-ministro António Costa, exímio na gestão política de crises de todos os feitios, pediu ao Conselho Superior do Ministério Público um álibi – um parecer sobre a imunidade de Manuel Vicente. O parecer, que terá negado qualquer veleidade de imunidade mas que Costa se recusa a tornar público, serviria desejavelmente para acalmar os ânimos angolanos. «Ficou claro que o único irritante que existe nas nossas relações é algo que transcende o Presidente da República de Angola e o primeiro-ministro de Portugal, trans- cende o poder político, e tem a ver com um tema da exclusiva responsabilidade das autoridades judiciárias portuguesas», disse Costa à margem da última cimeira União Europeia-união Africana, em Abidjan. Em tempos, o ministro português Rui Machete pediu desculpas públicas pelas investigações judiciais envolvendo o ex-vice-presidente angolano. Costa não tem a mesma falta de jeito, mas o objectivo diplomático não é muito diferente. Será que a discussão, fora de prazo e de contexto, sobre a continuidade da procuradora-geral da República portuguesa tem alguma coisa a ver com isto? Joana Marques Vidal, que acaba o mandato em Outubro, distinguiu-se pelo combate à grande corrupção. Há muito que a Constituição e as leis portuguesas determinam a separação de poderes e a independência do Ministério Público e dos tribunais. Mas até agora, sempre que algum caso tocava uma figura politicamente sensível, os cavalheiros na cúpula do Estado arranjavam maneira de arrumar a investigação sem estrondo. Isso mudou – e o incómodo que tem perseguido ex-políticos como o socialista José Sócrates ou o social-democrata Miguel Macedo é agora extensível a figurões estrangeiros, como Manuel Vicente. É só preciso que haja provas e explica- ções a dar num tribunal de Direito. Quando a ministra da Justiça portuguesa Francisca Van Dunem, a 10 meses do fim do mandato da Procuradora- Geral mas apenas a duas semanas do início do julgamento de Manuel Vicente, sinalizou que Joana Marques Vidal não será reconduzida, abriu um debate sobre o cami- nho que levará este ano a justiça portuguesa. O Governo e o Presidente da República terão de se entender sobre quem querem à frente das investigações à grande corrupção que é hoje absolutamente visível, em Portugal e em Angola. Em vários círculos políticos, nos dois países, a tentação existe (aliás, esforça-se mal por se esconder) em garantir uma justiça domesticada e amigável aos negócios escuros de algumas elites. O ano em que João Lourenço terá de demonstrar se são a sério os seus compromissos de combate à corrupção é também o ano em que o Presidente e o Governo portugueses terão de decidir se querem uma justiça a andar para a frente ou para trás. Essa tensão, entre construir verdadeiros Estado de Direito ou manter em andamento máquinas de poder pessoal, é o verdadeiro «irritante» que definirá o futuro dos dois países.”