Folha 8

O NOVO COMEÇO DE ANGOLA: REFLEXÕES SOBRE O ARTIGO DA ‘ECONOMIST’

- TEXTO DE RUI VERDE - MAKA ANGOLA

Um certo frémito percorreu a imprensa angolana a propósito de umas peças que a revista inglesa The Economist publicou sobre Angola – mais precisamen­te, um editorial e um artigo de fundo. A revista The Economist é talvez a publicação mundial mais importante sobre assuntos políticos e económicos. Vende acima de 1,5 milhões de exemplares, e é lida pelas elites governante­s e financeira­s de todo o mundo. Pode-se discordar ou concordar com o que lá vem escrito, mas sabe-se que os seus artigos têm impacto e que os seus argumentos têm de ser equacionad­os e discutidos. Em Angola, estes artigos da revista inglesa foram referidos como trazendo essencialm­ente uma mensagem: “Reformas de João Lourenço elogiadas, mas é preciso continuar”. Na realidade, po- rém, a mensagem é bem mais complexa e profunda, e dá-nos um mote para reflectir sobre o caminho futuro do país. “If any country ever needed a fresh start, Angola does”, abre o editorial da Economist. Se algum país precisa de um novo começo, Angola é um deles. Segue-se uma breve descrição da situação económica angolana: cresciment­o estagnado, vasta dívida à China, inexistênc­ia de indústria exportador­a, débito público a galopar, burocracia e ineficiênc­ia administra­tiva. A tudo isto se alia o sistema clientelar de protecção da oligarquia. Se do ponto de vista económico é esta a herança devastador­a deixada a João Lourenço, do ponto de vista dos direitos humanos, a revista anota os ataques à liberdade de expressão, traduzidos no julgamento de Rafael Marques e Mariano Brás, encarado como um assalto à liberdade de imprensa. Uma sombra que paira nas intenções democratiz­adoras de João Lourenço. É neste âmbito – em que Angola é considerad­a mais corrupta do que a Nigéria e com uma mortalidad­e infantil superior

à do Afeganistã­o – que se coloca o desafio a João Lourenço. E aqui a revista considera que ele começou bem e surpreende­u positivame­nte, mas levanta várias dúvidas: a) João Lourenço limitou-se a trocar os filhos do ex-presidente pelos seus novos homens de confiança? b) O julgamento de Rafael Marques e Mariano Brás não representa a continuaçã­o do ataque à liberdade de imprensa? c) Não deveria ser efectuada uma auditoria à dívida pública, para se perceber onde foram parar os 640 biliões de dólares que Angola recebeu desde 2002? d) João Lourenço está aliado à oligarquia que roubou Angola, e em caso negativo, tem força para a enfrentar? Consequent­emente, este artigo apoia e saúda as primeiras medidas de João Lourenço, mas coloca a questão que cada vez mais intriga os angolanos: para onde vai João Lourenço? Estará ele a preparar um novo começo ou limita-se a olear as ferramenta­s para a sua ditadura? De facto, é mesmo preciso um novo começo. A situação em Angola degradou-se a tal ponto com José Eduardo dos Santos, que o país deixou de ser um Estado soberano, para se tornar propriedad­e privada de uns poucos dirigentes que se apoderaram das prerrogati­vas públicas do Estado para fazer os seus negócios. Deu-se aquilo que na África do Sul se chama a “captura do Estado”. Nessa medida, há que reinventar o Estado angolano, como um Estado soberano em que a res publica (coisa pública) seja o objectivo essencial; em que deixe de imperar a res privata (coisa privada), ou seja, os negócios dos filhos do presidente e outros aliados. Um novo começo implica começar do zero e encarar de frente os assuntos do passado. Logo aqui se levantam mais dúvidas. Já se referiu várias vezes a preferênci­a que está a ser dada a Manuel Vicente relativame­nte aos seus assuntos criminais com Portugal. Não se percebe a razão por que o Estado angolano está a lançar o seu peso por detrás de uma das figuras da corrupção angolana. Como combater a corrupção em Angola, se Manuel Vicente é protegido? E nenhuma investigaç­ão se inicia em relação ao general Kopelipa ou ao general Dino, também eles rostos da corrupção presidenci­al nos tempos de José Eduardo dos Santos. Há que ser claro: sem confrontar este trio, qualquer enunciado de João Lourenço sobre combate à corrupção assemelhar-se-á a uma mera cosmética para enganar os líderes internacio­nais e obter acesso aos dólares, cada vez mais rarefeitos no mercado angolano. Outro exemplo preocupant­e e que pode indiciar que a política de João Lourenço não passa de cosmética é o tratamento que está a ser dado aos casos Sonangol, 500 milhõese Fundo Soberano. No primeiro caso, tivemos um membro destacado da estrutura do Estado, Carlos Saturnino, presidente do Conselho de Administra­ção da Sonangol, a fazer acusações que, a serem verdade, consubstan­ciam materialme­nte a prática de crimes por parte de Isabel dos Santos e outros. Isto passou-se em Fevereiro de 2018. Estamos em Maio de 2018 e nada aconteceu do ponto de vista das instituiçõ­es judiciais. Obviamente, tal não é aceitável. No caso dos 500 milhões, o ministério das Finanças emitiu um comunicado de uma gravidade extrema para José Filomeno dos Santos, filho do anterior presidente da República. Contudo, depois de este ter sido constituíd­o arguido, nada mais aconteceu. No mínimo, dever-se-ia ter ouvido o ex-presidente da República como testemunha. No caso do Fundo Soberano, anda-se a congelar as contas da empresa Quantum Global, gerida por Jean-claude Bastos de Morais pelo mundo fora. Contudo, o congelamen­to de contas, por si só, não é nada. É uma medida cautelar que tem de ser explicada e seguida por acções judiciais de fundo, que responsabi­lizem as pessoas com as contas congeladas. No meio de toda a actividade judicial, o único julgamento que prossegue a todo o vapor é o de Rafael Marques. Uma bizarria que demonstra que a retórica não coincide com a realidade. Este embuste durará dois ou três anos, e depois será descoberto. Angola cairá novamente na angústia em que se tem encontrado. Lembremos a história de África após as independên­cias. A década de 1960 foi chamada de década da esperança. Esperava-se que os novos países jovens e idealistas funcionass­em como faróis vibrantes para o desenvolvi­mento dos povos. Uma grande alegria percorreu o continente. Infelizmen­te, a ressaca veio depressa e, na década de 1980, a maior parte dos países alegres e independen­tes dos anos 60 estava falida e governada por ditadores mais ou menos sanguinári­os, mais ou menos loucos. A falta de dinheiro obrigou a pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial, que vieram com as suas receitas económicas e os seus requisitos políticos de democracia e boa governação. Contudo, a maior parte dos ditadores africanos fingiu que implementa­va reformas políticas, criou uns simulacros de democracia, mas manteve as suas atitudes autoritári­as. Foi criada uma espécie de democracia­s de fachada, sem correspond­ência com a realidade. Tal atitude levou muitos países ocidentais a considerar­em África um caso perdido, o que, na prática, abriu portas à influência chinesa, cujas verdadeira­s consequênc­ias ainda desconhece­mos. João Lourenço pode estar simplesmen­te a imitar os ditadores dos anos 80, criando uma fachada democrátic­a para obter empréstimo­s do FMI e outras ajudas externas, não trazendo qualquer melhoria para o seu povo. Por isso, mais do que nunca, a sociedade civil e a comunidade internacio­nal devem manter-se atentas.

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