UMA REALEZA COM NOME VÍRGULA
Virgula, o símbolo da dúvida; o fascínio de sim e não. Vírgula, uma ponte a meio caminho entre certeza e titubeio. Sereia solta, que nunca estende a mão na plenitude. Ai se pudesse! Mudavalhe o nome de Vírgula para Noémia de singela adoração. Esta, sim, não tenho dúvidas que seria uma vibrante candeia ao rubro, no topo da minha ideia. E saberia muito bem erguer o cetro e dar sequencia a grandes feitos. Contudo, vou ter de falar da Vírgula, a temerosa sentinela da minha praça. A menina nutre medo de rotura e da corrente-solidez. E não se coíbe de confessar «eu, a pulcra? Não, certeza inamovível de nada tenho. Faço baloiçarme muito na jangada de devaneio e nunca sei de que lado estou inclinada para cair, nem para onde exatamente quero seguir». Virgula, a grande epopeia dos reticentes. Um pássaro na voga de entusiasmo alando os céus, planando voo a sítio incerto. Talvez girando sobre a ponta dos próprios pés, pairando sobre um lugar para dançar, a meio de um percurso, em direção ao númen das nuvens. Virgula, a virtude de uma sentença que dura pouco. Se é leve a pena que a profere, proscrita é natureza de estranho punho. E ela sempre disponível para tirar todas as dúvidas «eu, a Virgula, com ius imperi? Estão a brincar, não é. Não, obrigada». A Virgula, no enfiamento de uma ínclita jornada só atrapalha. Para no auge de cortejo e manifesta humildemente «es- tou cansada. Sinto caibra numa perna, claudica-me o miolo da cintura, estou fraquinha de estômago. Podem avançar que já vou ter». Virgula, uma ponte de papel sulcando oceano, o bico de papiro a por na água. Aliás, uma esteira sobre o rio, enquanto sonha. Virgula, a huri que de irredutível nada tem, até mesmo com Bisturi no cerne de desejo. Vírgula, a híbrida figura, esconsa, flexível, uma flácida na lama, andando em direção à retaguarda ou enguia embrenhando-se, galgando fogosamente o pau de luxo, serpenteando as curvas do cilíndrico Sodoma e de Gomorra, numa incessante interação de apanha névoa e faz-de-conta. Vírgula, na forma e compleição. A moça diletante não esconde a propensão e prontamente assume a barca do dilúvio. Pois, quando questionada, dá o mote de modo claro e ternurento «de cabeça para baixo, sou cabide e tenho fibra. Na vertical fico esguia e sou a voz de lassidão de todas as coisas vãs. Estão a ver que sou confusa». Virgula, uma escalada de trémula feição, que não deixa poisar a chuva torrencial sobre a leira de sua extensa profecia. Vírgula, um espaço entre o céu e a terra de promissão. Uma camada de espuma nos interstícios da bruma seca. Tem a silhueta de lua, cativa e até arrasta multidão, mas depois muda de estilo e de feitio. Carrega o seu semblante e vira brava. A onda das marés, o ciclo intermitente da lua. Na fase cheia tem vigor e persistência. Porém, na nova, muito débil, quase sempre se sucumbe, desaparece do radar de expetativa, como uma lancha soçobrando no alto mar. A borboleta de pantufa, sublime medianeira como é, e justamente igual a todos os mediadores do universo, nunca dá a sua exata lati- tude. Virgula, tal como a lua, não tem esfera exclusiva nem orbita de estar. Tanto faz andar na bussola do vento ou na rota de todas as vagas momentâneas. Ganha ritmo de Noto ou Euro, de Zéfiro malquisto ou coisa assim. Não cria reino, não brande espada, não põe a mão no leme, não ergue pontes e nem funda a zona franca de vária tribo. E claro está: paga tributo a quem concebe as engenhocas sazonais e castelos acoplados nas teias de aranha. Desconjuntados? Talvez. Vírgula, a moça que nunca quer arengas e pelejas, nem mesmo comodidades. Chateia-lhe o fervor de estar no centro da geringonça, apesar de ser o eixo de todo vasto furação. E podia ser o Éolo em vez de vento, o esteio de referência, mas, enfim, só nas calendas. Passa o tempo nos elos de saturno e Bora bué. A ninfa sente medo de afirmar, guarda asco ao compromisso. Virgula, quando propala e sela vínculos não é nada de confiar para o futuro. A meio do caminho destrói a cria, matando a própria prole, isto é, remetendo a fileira de pupilos e sequazes para extenuadas catacumbas. Virgula, bonita mais que leda lua, quando promete é de esperar o tempo todo e nunca chega. Assim, a virgula vai vivendo, vai propondo a sua realeza, com radiante esperteza, aliás. Às vezes, com excesso de pronuncia, outras vezes, nem por isso. E, pouco a pouco, vai sumindo e desaparecendo da cena, conforme a sua veneta e fraturante visão do cosmo. Virgula, uma porreira arrasadora de oblíquos pretendentes, um bico de papel a sorver água no mar de limbo. Vírgula, por que tanto me surpreende e desencanta?!