Folha 8

UMA REALEZA COM NOME VÍRGULA

- DOMINGOS L. MIRANDA FURTADO DE BARROS

Virgula, o símbolo da dúvida; o fascínio de sim e não. Vírgula, uma ponte a meio caminho entre certeza e titubeio. Sereia solta, que nunca estende a mão na plenitude. Ai se pudesse! Mudavalhe o nome de Vírgula para Noémia de singela adoração. Esta, sim, não tenho dúvidas que seria uma vibrante candeia ao rubro, no topo da minha ideia. E saberia muito bem erguer o cetro e dar sequencia a grandes feitos. Contudo, vou ter de falar da Vírgula, a temerosa sentinela da minha praça. A menina nutre medo de rotura e da corrente-solidez. E não se coíbe de confessar «eu, a pulcra? Não, certeza inamovível de nada tenho. Faço baloiçarme muito na jangada de devaneio e nunca sei de que lado estou inclinada para cair, nem para onde exatamente quero seguir». Virgula, a grande epopeia dos reticentes. Um pássaro na voga de entusiasmo alando os céus, planando voo a sítio incerto. Talvez girando sobre a ponta dos próprios pés, pairando sobre um lugar para dançar, a meio de um percurso, em direção ao númen das nuvens. Virgula, a virtude de uma sentença que dura pouco. Se é leve a pena que a profere, proscrita é natureza de estranho punho. E ela sempre disponível para tirar todas as dúvidas «eu, a Virgula, com ius imperi? Estão a brincar, não é. Não, obrigada». A Virgula, no enfiamento de uma ínclita jornada só atrapalha. Para no auge de cortejo e manifesta humildemen­te «es- tou cansada. Sinto caibra numa perna, claudica-me o miolo da cintura, estou fraquinha de estômago. Podem avançar que já vou ter». Virgula, uma ponte de papel sulcando oceano, o bico de papiro a por na água. Aliás, uma esteira sobre o rio, enquanto sonha. Virgula, a huri que de irredutíve­l nada tem, até mesmo com Bisturi no cerne de desejo. Vírgula, a híbrida figura, esconsa, flexível, uma flácida na lama, andando em direção à retaguarda ou enguia embrenhand­o-se, galgando fogosament­e o pau de luxo, serpentean­do as curvas do cilíndrico Sodoma e de Gomorra, numa incessante interação de apanha névoa e faz-de-conta. Vírgula, na forma e compleição. A moça diletante não esconde a propensão e prontament­e assume a barca do dilúvio. Pois, quando questionad­a, dá o mote de modo claro e ternurento «de cabeça para baixo, sou cabide e tenho fibra. Na vertical fico esguia e sou a voz de lassidão de todas as coisas vãs. Estão a ver que sou confusa». Virgula, uma escalada de trémula feição, que não deixa poisar a chuva torrencial sobre a leira de sua extensa profecia. Vírgula, um espaço entre o céu e a terra de promissão. Uma camada de espuma nos interstíci­os da bruma seca. Tem a silhueta de lua, cativa e até arrasta multidão, mas depois muda de estilo e de feitio. Carrega o seu semblante e vira brava. A onda das marés, o ciclo intermiten­te da lua. Na fase cheia tem vigor e persistênc­ia. Porém, na nova, muito débil, quase sempre se sucumbe, desaparece do radar de expetativa, como uma lancha soçobrando no alto mar. A borboleta de pantufa, sublime medianeira como é, e justamente igual a todos os mediadores do universo, nunca dá a sua exata lati- tude. Virgula, tal como a lua, não tem esfera exclusiva nem orbita de estar. Tanto faz andar na bussola do vento ou na rota de todas as vagas momentânea­s. Ganha ritmo de Noto ou Euro, de Zéfiro malquisto ou coisa assim. Não cria reino, não brande espada, não põe a mão no leme, não ergue pontes e nem funda a zona franca de vária tribo. E claro está: paga tributo a quem concebe as engenhocas sazonais e castelos acoplados nas teias de aranha. Desconjunt­ados? Talvez. Vírgula, a moça que nunca quer arengas e pelejas, nem mesmo comodidade­s. Chateia-lhe o fervor de estar no centro da geringonça, apesar de ser o eixo de todo vasto furação. E podia ser o Éolo em vez de vento, o esteio de referência, mas, enfim, só nas calendas. Passa o tempo nos elos de saturno e Bora bué. A ninfa sente medo de afirmar, guarda asco ao compromiss­o. Virgula, quando propala e sela vínculos não é nada de confiar para o futuro. A meio do caminho destrói a cria, matando a própria prole, isto é, remetendo a fileira de pupilos e sequazes para extenuadas catacumbas. Virgula, bonita mais que leda lua, quando promete é de esperar o tempo todo e nunca chega. Assim, a virgula vai vivendo, vai propondo a sua realeza, com radiante esperteza, aliás. Às vezes, com excesso de pronuncia, outras vezes, nem por isso. E, pouco a pouco, vai sumindo e desaparece­ndo da cena, conforme a sua veneta e fraturante visão do cosmo. Virgula, uma porreira arrasadora de oblíquos pretendent­es, um bico de papel a sorver água no mar de limbo. Vírgula, por que tanto me surpreende e desencanta?!

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