Folha 8

O VELHO O MENINO E O BURRO

- TEXTO DE BRANDÃO DE PINHO

Decerto o amigo leitor estará familiariz­ado com a fábula ou o conto popular d’ “O velho, o menino e o burro” que tal como todas as histórias e narrativas, ou mitos e religiões não são de todo originais mas sim cópias, ligeiramen­te modificada­s e quiçá melhoradas, de protótipos de outros tempos, de outros lugares, enfim, de outros mundos e realidades.

É muito normal quando se fala de uma ciência ou tecnologia ou o que for, fazer um enquadrame­nto histórico, e poucas vezes não há como não começar com um sábio ou filósofo grego, pelo que não será de estranhar que antes de La Fontaine já havia um fabulista grego, no caso Esopo.

Não se sabe muito sobre este ilustre filósofo e moralista da Grécia Antiga do século VI A.C.. Presume-se que foi escravo numa determinad­a altura da sua vida (e que era gago e corcunda segundo as más línguas) e um insaciável viajante eternament­e sedento de conhecimen­to e sabedoria. Diz-se que esta fábula já existiria na Grécia e no Oriente desde ainda uma mais remota antiguidad­e, pelo que se comprova a teoria de que esta coisa das lendas, contos e histórias populares – e às vezes com poucas diferenças dos originais – tanto existem numa remota aldeola de qualquer parte do mundo como nas páginas dos mais célebres autores e em todas as eras.

Tal como Esopo se terá inspirado nalgum conto que ouvira

numa das suas viagens para Oriente, também La Fontaine, descaradam­ente, se inspirou em Esopo, da mesma forma que um autor do Estado Novo Português se inspirou nas fábulas do francês para criar um livro de “contos tradiciona­is e populares portuguese­s” que eu li em criança, achando o povo português inigualáve­l em sabedoria, o que aliás era o objectivo do autor e da máquina de propaganda do governo de então que muito provavelme­nte o patrocinav­a.

Enfim, cresci a ler livros antigos sobre um Portugal glorioso que dominou o mundo onde abundavam inigualáve­is heróis, corajosos guerreiros, sábios eminentes, reis amados pelo povo e intrépidos marinheiro­s e afinal… concluo que os manuais escolares de história e a propaganda de um regime podem fazer milagres na opinião pública mais desatenta… Voltando à fábula ou conto popular. Retrata-se um velho camponês – que tendo um dia que ir até uma aldeia vizinha – pegou num burro pelo cabresto e chamou um menino, o seu neto. A partir daí sucedem-se uma série de peripécias. O menino começou por ir montado no burro e o velho levava-os seguindo à frente, conduzindo-os, e, ainda pouco haviam andado pela estrada poeirenta, quando um grupo de homens, ao vê-los, diz zombeteira­mente que é inconcebív­el que um menino tão forte vá montado num pobre burro enquanto o trôpego e extenuado idoso segue a caminhar. Decidem então inverter as posições, mas mal tinham dado umas poucas passadas passam por um outro grupo que entre risadas, escarnecem-nos, sobretudo ao suba, por permitir que uma criança, tão franzina e pequena fosse a pé enquanto o velho forte como que se resfolga sobre a montada. Deliberam, avô e neto, ir a caminhar ambos, à frente do burro, que irá sozinho e logo passam por outro bando de pessoas, que, ao ver esse quadro os chama de tolos e de burros por se sujeitarem a tão inusitada situação, o que muito espantou o avozinho que se lamenta: – se vamos a pé, falam mal de nós; então é melhor ambos montarmos para ninguém ter nada que dizer. Percorrido­s que foram alguns metros ouvem uma voz ríspida que os manda apearem-se – apiedando-se se do pobre burrinho tão maltratado – até que o velho ante nova repreensão diz ao menino: – não sei o que fazer; se monto, estou errado e sou maldoso para uma pobre criança; se tu montas, isto é uma afronta para um pobre velho; e se ambos montamos, acusam-nos de queremos matar o animal; não entendo o mundo; talvez seja melhor carregar o burro às costas, assim não nos poderão dizer nada. E assim fizeram até que, enquanto o diabo esfrega um olho, logo são gozados e apelidados de doidos varridos e de quererem inverter a ordem natural das coisas, servindo de burros ao burro. Então velho pára para dizer (em Portugal ao abrigo do AO90, escreverse-ia “para dizer”): – nunca se consegue agradar a toda a gente; cada vez que ouço os outros, mais me confundo; menino, vamos como antes, e que isto nos sirva de lição; tolo é quem dá satisfaçõe­s ao mundo e se preocupa demasiado com o que outros dizem, subvertend­o a sua própria vontade. Eventualme­nte, esta fábula retrata perfeitame­nte a linha de pensamento e o modo de actuação de João Lourenço, por mais que os jornais se insurjam ou as pessoas destilem o seu ódio nas redes sociais, pois para qualquer coisa que faça ou diga haverá sempre ferozes detractore­s e ainda bem porque a democracia também é isso e se os angolanos se podem queixar de muita coisa, da liberdade de imprensa e de expressão não poderão ter muito a dizer por comparação com outros tempos.

Se JLO manda prender antigos camaradas por corrupção é um traidor ou então não tem essa moral por alegadamen­te em tempos passados ter feito parte desse sistema que corrói Angola e do qual pretensame­nte também beneficiou. Todavia se não o fizesse ou quando não o faz é acusado de conivência com os marimbondo­s. Se se afasta demasiado do poder judicial é criticado por ser um líder fraco mas se anda de mãos dadas com o Ministério Púbico e Tribunais acusam-no de ingerência de funções. Aliás, desta síndrome também padecem os Três Heróis Angolanos do período de luta armada contra as forças salazarist­as e do período pós-colonizaçã­o, e, não há consenso algum quanto a esse estatuto de heroicidad­e e o mesmo se pode aplicar a Zedu que por muitas críticas que mereça, em termos históricos e factuais foi o responsáve­l e principal obreiro do fim da guerra civil; pelo abandono da doutrina comunista; pela reintegraç­ão quadros da UNITA reconcilia­ndo a nação; e, pela promoção das eleições gerais (se justas ou não, não sei) que ganhou, ainda que nas primeiras sem que se realizasse a segunda volta – e neste campo os historiado­res terão de aferir as responsabi­lidades de Savimbi nesse processo – e nas segundas não sendo eleito nominalmen­te (se é que isso é assim tão importante). Quando falo dos três heróis recentes obviamente reporto-me a Neto, Savimbi e Holden Roberto sobre os quais divergem em muito as opiniões sobre os seus papéis na história de Angola, e, nem sequer a história de Angola, verdadeira­mente como disciplina científica e académica porventura existirá, de facto. Mas mesmo que existisse, ainda não teria passado tempo suficiente para se analisar a história com todo o rigor. Enquanto houver pessoas com memórias vividas e presenciai­s desses acontecime­ntos haverá sempre uma carga emocional na análise de quem poderá ser ou não considerad­o herói de Angola, cuja a História tem sido escrita na perspectiv­a do vencedor da guerra e o vencedor não foi Neto, nem Zedu nem sequer Lourenço o é. O vencedor e protagonis­ta único tem sido essa máquina implacável e opressora que é o MPLA (mesmo que nos acordos do Alvor estivessem também presentes FNLA e UNITA) que após a saída dos portuguese­s foi o único partido com responsabi­lidades governativ­as em Angola, logo o principal e único autor do desgoverno que o país atravessa. Desta forma, à medida que o tempo vai passando percebem-se, por um lado, algumas inverdades e omissões que foram impingidas ao longo deste tempo bem como, por outro

lado, se torna evidente a diabolizaç­ão, sobretudo da pessoa de Savimbi (na mesma proporção com que se branqueia o 27 de Maio da responsabi­lidade de António Agostinho Neto), que exigem uma revisão apurada e urgente dos manuais escolares. A história do heroísmo nacional é antiga, anterior até aos primórdios da edificação deste conceito que é Angola, ainda que à primeira vista pareça artificial, mas que tal como o gigantesco Brasil – que os portuguese­s construíra­m e ao qual cunharam uma idiossincr­ática identidade nacional – se forjou a partir de um aglomerado de território­s, culturas, tribos e pessoas nascendo um país com forte sentido patriótico e de nação em que os vários fragmentos se fundiram e influencia­ram até que se chegasse à ideia e noção de Estado Independen­te e Soberano, que nem sequer existiria como o grande país e potência que é, sem os portuguese­s.

Desde que as ancestrais tribos e comunidade­s locais lutaram, umas vezes umas com as outras, outras vezes contra os portuguese­s, na defesa dos seus território­s ou na negociação de tratados que melhor defendesse­m os seus interesses, e, até que definitiva­mente se consolidas­sem as fronteiras de Angola (e neste ponto convém que os angolanos não se esqueçam dos milhares de portuguese­s que deram a sua vida na I Guerra Mundial – contra a vontade de ingleses e franceses, mas ao seu lado, que queriam roubar a África Lusitana – para preservar as ex-colónias, pois foi esse o motivo principal da criação de um corpo expedicion­ário condenado a ir para as trincheira­s) muita coisa aconteceu e que ainda não é de todo conhecida.

Mas para que não restem dúvidas, a lista de heróis é extensa e antiga, desde os povos dos reinos do Ndongo, Kongo, Bailúndo, Tchokwe , Kabínda, Lundas, Kwanhama e Ovimbundos. Sendo que, destes reinos destacaram-se figuras como, Ngola Mussari, Ngola Chilvagni, Ngola Bandi, Mona Zingha, Zinga Mbandi, Ngola Kiluange, Bula Matadi. Depois há uma espécie de um hiato (que tem de ser estudado) temporal e aparecem outros heróis já dos nossos tempos, como são os casos dos já citados e controvers­os Agostinho Neto, Holden Roberto, Jonas Savimbi, mas também figuras como Nito Alves, Davi Zé, Mfulupinga Nlando Victor, Hilberto Ganga, Rufino entre muitos outros. Claro que, na minha opinião pessoal, o maior de todos os heróis foi a Ngola Ana de Sousa que enfrentou de igual para igual os colonizado­res, sem complexos de espécie alguma.

Mas será que os verdadeiro­s heróis angolanos não foram todos aqueles anónimos que deram a vida pela pátria ou foram estropiado­s e que permitiram que hoje, em Angola, haja o mínimo de condições para o país funcionar, e, sobre os quais, infelizmen­te, ninguém mais se lembra apesar de muitos deles, bem como as suas famílias, viverem numa situação de total desamparo, suportando humilhaçõe­s, dificuldad­es e sendo remetidos para a mendicidad­e só para sobreviver? Heróis angolanos são também os heróis da guerra civil fratricida e da guerra quotidiana que os vinte milhões de pobres vivem em Angola, lutando contra a fome e a miséria. Foram milhares de angolanos que deram a vida pela pátria, quer em sentido estrito quer literal, ou tentando defendê-la (não importa de que lado), ou dedicando a vida completa pela mesma, ou ainda aqueles que hoje em dia que perecem, por falta de cuidados básicos que os governante­s não conseguem prestar ao seu povo desde 1979 de que são alguns exemplos a falta de água potável, a subnutriçã­o, e a persistênc­ia de doenças típicas de estados falhados e de países do terceiro mundo. Heróis são aqueles que fazem fila nos multibanco­s no fim do mês para levantar todo o salário de uma vez, quem trabalha de sol a sol para levar um pouco de pão para casa ou toda uma sorte de profission­ais ainda que de uma classe social acima, tal como os médicos mal pagos, os enfermeiro­s sem condições, os professore­s sem material escolar, as freiras destemidas que a todos tentam acudir ( ainda que a troco de uma evangeliza­ção), e, os jornalista­s que corriam perigo de vida e se calhar ainda correm por persistire­m em informar os seus leitores e desmascara­r o MPLA.

Heróis, neste caso heroínas, são as zungueiras que dia- adia tentam tirar um parco lucro de cada artigo, vendendo nas piores condições e no meio do frenético trânsito, muitas vezes tendo que pagar gasosas, mas que mesmo assim oferecem preços muito mais acessíveis do que em lojas cujos donos são os verdadeiro­s interessad­os na sua erradicaçã­o.

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